sábado, 22 de dezembro de 2012

Palco do descompromisso - João Paulo‏

Estado de Minas: 22/12/2012

O ano termina mal para a cultura em Minas Gerais. Não houve incremento de recursos, vários festivais foram cumpridos em razão de pressão popular, não se registrou a construção de nenhum equipamento importante (o esporte ganhou um estádio monumental e um reformado, ainda que o novo Independência tenha deixado o torcedor sem ver parte do jogo, com suas incompetentes quinas cegas). E o pior, muito do que vem sendo prometido há anos no setor cultural não andou um passo. Só para ficar em dois espaços públicos exemplares, o Teatro Francisco Nunes, da Prefeitura de Belo Horizonte, e o Teatro Clara Nunes, da Imprensa Oficial (portanto do estado), permaneceram fechados, completando pelo menos um lustro de inatividade.

A situação é grave. Quando dois teatros públicos ficam fechados por tanto tempo, há pelo menos três consequências graves. A primeira é a perda de oportunidade para apresentação de trabalhos de grupos que não encontram guarida nas casas administradas pelas regras de mercado. Tradicionalmente, os espaços públicos permitem que grupos em início de carreira ou que trabalham com linguagem experimental disponham de condições facilitadas naquelas casas, geralmente a 10% da bilheteria. Todos os atores, grupos e produtores de Minas sabem disso e fizeram dessa abertura um estágio fundamental em suas trajetórias.

O segundo prejuízo se dá no afastamento do público do circuito cultural da cidade. Todo mundo sabe que cultura é hábito que precisa ser cultivado. Há uma geração na cidade que não conhece o Francisco Nunes e o Clara Nunes, que não os tem como espaços possíveis de exercício de sua cidadania cultural. Os teatros fechados são pontos cegos na trama que compõem o mapa da cultura da cidade. Em outras palavras, além de prejudicar a criação, as portas cerradas dos teatros interferem na formação de público e na possibilidade de circulação de espetáculos.

Mas a terceira e mais danosa agressão atinge a cultura em si, como sinal de seu desprestígio. Afinal, trata-se, nos dois casos, de obras não apenas reclamadas pelo tempo, mas relativamente simples em comparação com outras intervenções urbanas que vêm sendo feitas na cidade. Ou seja, tivemos recursos para construir a Linha Verde e destrui-la em seguida para implantar outro projeto que estreitou ainda mais as pistas de rolamento de carros e refez cruzamentos que haviam sido suprimidos, por exemplo, e não temos recursos para consertar um telhado, recompor um palco, acertar uns camarins de casas relativamente acanhadas.

A cultura vem sendo sistematicamente empurrada para políticas procrastinadoras. O caso dos dois teatros é apenas o mais emblemático, mas não é único. Outro exemplo de retirada do empenho público no setor tem sido a dupla operação de jogar o financiamento para o setor privado e, como corolário, privatizar o que deveria ser público por natureza. Assim, as empresas se assenhoram de projetos que são financiados com recursos públicos (dinheiro que deveriam pagar como imposto) e os vendem como obra de seu investimento direto. Ou seja, fazem marketing com o chapéu do contribuinte e ainda posam de mecenas.

Em causa própria 


Outro artifício que se tornou método entre os gestores públicos foi o de inscrever seus próprios projetos e folha de gastos com manutenção de espaços nas leis de incentivo que eles mesmos julgam. Depois, é só pegar recursos de empresas públicas e direcioná-lo para a sustentação de produções e espaços que deveriam ser bancados com verbas do orçamento. É o que fazem, por exemplo, o Palácio das Artes e a Filarmônica de Minas Gerais, que competem por recursos da lei de incentivo que são geridos pelo próprio estado. O governo se faz de produtor e, usando de chicanas legais (Oscips e ONGs) financia-se a si próprio por meio de leis que deveriam atender ao mercado cultural privado. Além de retirar recursos de outros projetos, o gestor público retira de si a pressão pelo aumento do orçamento corrente na rubrica da cultura.

Um exemplo dessa deturpação foi o anúncio, feito recentemente pelo Governo do Estado, da diminuição da contrapartida das empresas interessadas em investir em cultura. Ao minorar a participação do setor produtivo, o que o governo faz é desviar recursos de impostos para projetos que ele julga que mereçam investimento público (já que foram aprovados pelos critérios da lei). Ora, o mais correto, eficiente, democrático e transparente seria utilizar esse mesmo recurso incentivado como incremento ao orçamento da cultura.

Essa lógica de empobrecer a cultura para empoderar o setor privado investidor, além de responder pelo processo de privatização do setor (todos os festivais, eventos e casas de espetáculo hoje ostentam nomes de patrocinadores quando na verdade são sustentados em última instância com verba pública) vem criando uma desvalorização da produção artística e dos próprios artistas. Como a lei de incentivo, em algum momento, criou a ideia de contrapartida em forma de espetáculos gratuitos, o público passou achar que o trabalho artístico não merece ser pago, que os ingressos precisam ser de graça ou muito baratos. Mesmo os grandes espetáculos, que sempre foram bancados pela bilheteria, hoje competem com pequenas produções e abiscoitam os recursos da lei para “baratear” seus ingressos. A classe média alta assiste hoje shows subsidiados, enquanto na outra ponta falta dinheiro para a cultura dita alternativa ou experimental. E os artistas se tornam os proletários do sistema, com seu trabalho rebaixado em termos de remuneração e valor social

Há outros fatos que comprovam essa perversão –usar dinheiro público (imposto não pago) para valorizar marcas de empresas –, que podem ser vistos pelos quatro cantos da cidade. Mas os teatros fechados são a maior vitrine do descompromisso. Estado e município, Minas Gerais e Belo Horizonte, Teatro Clara Nunes e Teatro Francisco Nunes, essas são as faces visíveis de como a cultura chegou ao fundo do poço. Não há verba para reformar os teatros e, mais uma vez, a solução parece se encaminhar via iniciativa privada, que deve assumir os teatros e, com isso, tirar deles o histórico compromisso com as prioridades públicas para fazer brilhar suas marcas.

Há outros exemplos numa cidade que não gosta de cultura: o adiamento sem fim da construção do Centro de Cultura de Santa Tereza, obra definida como prioritária pelo Orçamento Participativo (outra ferramenta em baixa em tempos de administração empresarial da coisa pública) há vários anos e que ficou para as calendas; o estado lastimável do Teatro Marília, também ligado à PBH, cujo palco não suporta produções que exijam o mínimo de condições técnicas; a extinção dos cargos de diretor dos museus municipais; a tentativa sempre reiterada de tirar as manifestações culturais da ruas e praças da cidade; e por aí vai.

No ano que acaba, o público vai continuar batendo com a cara na porta. Tanto bate até que ocupa.

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