Luiz Rosemberg Filho
Estado de Minas: 22/12/2012
Digamos que o tempo foi assumindo uma espécie de compreensibilidade de uma personagem construída ao acaso. Não era para existir assim tão forte, mas... cinema sem dinheiro algum o torna determinante. No caso do curta O doce segredo de Bárbara, de Paulo Augusto Gomes, é o que une passado e presente numa formulação de encontros e afetos. E, se no passado seria um filme maureano, no presente, sob a ótica da criação, aproxima-se muito das teorias de Brecht, com a personagem doce, feminina e sedutora questionando o próprio autor, que de frente para a sua personagem e de costas para a câmera justifica-se como mediador de um terceiro tempo, que é o do espectador.
E por mais que o filme tente acentuar conceitos afetivos, predomina claramente um questionamento do próprio cinema. Ora, por que ele não foi devidamente concluído no passado? Ou seja, o filme é um só, mas realizado em tempos diferentes. E poucos são os filmes nossos que trabalham delicadamente com o tempo como personagem. O tempo que passa marcando efetivamente a nossa pobre e empobrecida existência. E então várias são as claquetes que abrem o filme que fala do mundo rural mineiro. As imagens do passado são imprecisas e muitas vezes lembram a postura de Eduardo Coutinho no delicado Cabra marcado para morrer.
Só que Paulo Augusto cria um desconforto no tempo que passou. Talvez o filme rural concluído fosse uma outra coisa. Todavia, muitos anos depois, retoma o filme inacabado, o questiona, se questiona e é questionado. Não foi possível manter a plenitude dos sonhos do passado. Fez e fizeram um outro filme. Tem nas mãos novas questões e possibilidades. Trabalhar o cotidiano em tempos diferentes parece-me o grande desafio do diretor, que é permanentemente questionado pela sua personagem. Do livro da jovem Bárbara para o filme concluído anos depois, espaços diferentes de infinitudes poéticas e questões quanto à formação da jovem que se tornou mulher e também artista.
O realizador trabalha o estar no mundo como um fenômeno de vontades contraditórias. Sutil, joga bem com o tempo se afastando de processos mecânicos muito comuns usados nas televisões, onde o afeto e a paixão viram papel higiênico. Bárbara, jovem, doce e sedutora, é hoje uma forte mulher amadurecida. Tem em seu rosto as marcas vivas do tempo. Amou, foi amada e não se reconhece no livro da escritora. É o tal caso, quando e onde a presentificação do passado pode ser necessariamente, em termos individuais, um documento de verdades? Todo jovem tem o direito de ser como é, antes de entrar nos muitos horrores da vida, nos sistemas existentes. Sistemas que vivem da negação do humano e do afeto.
O doce segredo de Bárbara foge da pretensão de ser um filminho comum, sem nexo profundo com o processo de criação. Daí a sua ligação com o movimento do tempo e das palavras. Ainda ontem, imagens silenciosas de um filme interrompido por diversos motivos. Hoje, o mesmo filme metamorfoseando o tempo numa experimentação dura e ao mesmo tempo comovente, em que todos se questionam. O genial Nicholas Ray dizia: “Todavia, é ofício do diretor expor a si mesmo, em quaisquer maneiras que forem necessárias, a fim de se comunicar – seja diretamente ou por meio das performances de outros artistas”. E é por onde trilha este delicado curta de Paulo Augusto Gomes, redimensionando amorosamente a grande dama tchekhoviana do teatro mineiro.
Ela está quase sempre fumando em plano próximo, falando do vaivém do filme concluído agora. Não é um ajuste de contas, mas necessários encontros afetivos para um recomeço. Um esforço bem-sucedido para explicitar encantamentos poéticos. E o diretor vai preenchendo seu delicado curta com muitos abismos subjetivos, palavras, questões e conceitos. O curta nos faz viver o encontro produtivo e criativo com seus “velhos” atores, mais a presença da fotografia viva e criativa de Fábio Carvalho, e a montagem musical de Isabel Lacerda. Juntos, restauram os signos metafísicos do tempo que passou, em conexão com uma forma ampla de liberdade narrativa, onde tudo pode ser questionado. E onde tudo é questionado.
Paulo Augusto Gomes faz um filme de linguagem, tendo como referência teórica o cinema de Humberto Mauro, seu mestre e inspirador. Coeso, rompe com egoísmos e vaidades, deixando florescer o coletivo. É um pequeno-grande curta autoral que é de todos, servindo ao difícil autoconhecimento de cada um. E aí, o que está em questão é a relativização de cada participante e o cinema. Ora, o que significa criar subjetividades no cinema? A apreensão crítica desses valores nos leva a quê? Tudo está em xeque, da imagem ao espectador. E, na ideia de O doce segredo de Bárbara, o autor parece querer nos dizer que não está à venda. Nem é a última Coca-Cola gelada do deserto.
É um pensador que fala sério de costas para o quadro, apostando na sensibilidade de quem for ver. Uma radical desconexão com a ignorância televisiva se processa delicadamente, pois o filme a ser continuado ou concluído não é uma novelinha. Mas quase uma instalação de tempos não enraizados numa ideia única de certeza. Claro que o espectador televisivo corre o risco de se perder. Mas pouco importa que não seja um filme fácil, pois se lida com a linguagem como expressão do ser humano como paisagem. E é esse princípio de descompromisso com uma apaziguação de ânimo que o torna provocador e solar. Feminino e familiar, sem artifício técnico algum.
Sua contribuição ao cinema talvez seja ser um criativo vaivém de tempos intensos e indeterminados potencializando desestabilizações de certezas. E o feminino, que já foi um abismo de contradições e prostituição, é no curta de Paulo Augusto Gomes um espaço movediço de uma linguagem autoral. Um questionamento imaginativo na reconstrução de um filme delicado e amoroso. Ainda bem.
Humanismo de vitrine Vivemos num tempo infinito de subprodutos, da mídia à política. No cinema, então, nem se fala. O lixo predomina na inesgotabilidade de muitas certezas. Por que esse irracionalismo de editais, partidarização, burocratas, papelotes, espaços ocupados, concursos, fascismos, televisões e as multinacionais da informação? Isso tudo não parece ser uma nova forma de censura policial-militar? Não anda faltando discernimento aos nossos homens ligados à cultura? Faz algum sentido essa fanfarronada tropical baixa, que vem desde a ditadura? Sem remorso torturando, proibindo, excluindo e até matando, se necessário for?
Claro que os sabujos sem talento algum vão defender tudo e todos. É o tal humanismo de vitrine. O que eles acham que é a nossa idade de ouro! O que, em Paulo Emílio, era verdade e uma revolução, nos seus poucos e porcos “seguidores” é um real massacre do saber e a história indissociável da traição. Mas acham os velhos e novos fascistas que nunca vão apodrecer e morrer. E muitas são as cicatrizes deixadas pela burocracia e pela autoafirmação de idiotas no nosso pobre e empobrecido cinema brasileiro. E o que deveria ser uma luta por ideias e sonhos acabou virando um desejo agonizante pelo capital que tudo justifica, compra e corrompe.
Décadas depois, juntando-se a Fábio Carvalho e Isabel Lacerda como técnicos ousados e inventivos, e sua delicada atriz Yara de Novaes, agora madura, questionam o argumento, o tempo, o dinheiro e o próprio realizador que se justifica. Não apaziguando contradições, mas transcendendo tristezas e a má consciência viva e vivida no país de todos. O doce segredo de Bárbara talvez seja um dos curtas mais ousados e sinceros concluídos nos últimos tempos.
O filme passou a ser um enigma a ser decifrado. Multiplicaram-se as contradições. A jovem atriz que interpretava Bárbara é hoje uma revelação no teatro, trabalhando com o grupo Galpão em Belo Horizonte. Inventiva, dilacera o seu passado como personagem do filme em questão. Só que a imersão é coletiva, numa feliz dissolução de certezas. Um novo filme teria que surgir num desengajamento do passado, sem perder as referências do tempo, transformado também em personagem. E o que poderia ter tido um desfecho desconfortável reaparece ousado, original e criativo, cortando na própria carne. O doce segredo de Bárbara é um mergulho fundo e vitorioso na impermanência de estabilidades e certezas.
Paulo Augusto e sua personagem tentam encontrar novos caminhos. Mauro foi o ponto de partida. Apesar de bem-intencionado, o filme parou por falta de apoio, dinheiro e de um país menos emburrecido. Desalienação, aqui, segue sendo algo proibido. Incompreensível viver com isso, com tudo sempre sendo refeito de cima para baixo. Aqui, é o lixo humano que ocupa cargos na cultura, nas agências reguladoras, nas secretarias de cultura e nos ministérios. A utopia de um cinema inventivo vivido intensamente no passado deu lugar a um frágil classicismo de direita com todos os filmes comuns, iguais e televisivos.
Felizmente, não é por onde trilha O doce segredo de Bárbara, que cuidadosamente foi sendo reconstruído em tempos distintos. E, como dizia Brecht: “Nenhum realista deve conformar-se com a repetição do que já sabe: isso não demonstra uma relação viva com a realidade”. Com isso, Paulo Augusto rompe com uma representação previsível e joga-se numa totalidade feliz, extensiva à vida e ao cinema. E, na ânsia do visível, novas referências se apresentam, de Brecht a Godard. De Mauro, a complexidade de um cinema de linguagem. A linguagem do excesso. Da corporeidade poética e das excrescências do país de todos.
Quanto ao discurso amoroso, com sinceridade, ontem e hoje é a mesma e eterna busca de gozos e explosões criativas. Mas somos todos cúmplices de formações criminosas, promovendo futilidades como celebridades, festas, sucesso – e não o gozar. Ora, vê-se singularidade facial em algum político, comunicador, religioso, ator ou pensador? Todos se parecem! Também não adianta culpar A, B ou C, pois somos todos responsáveis por esse mecanicismo da mídia e da educação. Um novo ardor predomina na vida de todos: o ser-mercadoria! A puta de luxo que faz sucesso e vira periguete na TV. Mas como sabiamente afirma Hannah Arendt: “Jamais se pôs em dúvida que verdade e política não se dão bem e até hoje ninguém inclui entre as virtudes políticas a singularidade”.
Para dar um ponto final: O doce segredo de Bárbara é de uma gritante dignidade de sobrevivência da criação e do cinema. É como diz o filósofo Kant, defendido pelo querido Pedro Bento: “Todas as coisas que podem ser compradas podem ser trocadas e têm um preço; aquelas que não podem ser compradas não têm preço, mas dignidade”. E é por onde vai Paulo Augusto e sua trupe: onde o suporte simbólico passou a ser o tempo. Um tempo que traz a assinatura de um cinema inventivo de transmissão de afetos. O realizador o incorpora à vida de todos.
Luiz Rosemberg Filho é cineasta e teórico. Entre seus principais filmes, estão A$$untina das Amérikas, Crônica de um industrial e O santo e a vedete. Organizou e publicou livro de entrevistas traduzidas de Jean-Luc Godard.
E por mais que o filme tente acentuar conceitos afetivos, predomina claramente um questionamento do próprio cinema. Ora, por que ele não foi devidamente concluído no passado? Ou seja, o filme é um só, mas realizado em tempos diferentes. E poucos são os filmes nossos que trabalham delicadamente com o tempo como personagem. O tempo que passa marcando efetivamente a nossa pobre e empobrecida existência. E então várias são as claquetes que abrem o filme que fala do mundo rural mineiro. As imagens do passado são imprecisas e muitas vezes lembram a postura de Eduardo Coutinho no delicado Cabra marcado para morrer.
Só que Paulo Augusto cria um desconforto no tempo que passou. Talvez o filme rural concluído fosse uma outra coisa. Todavia, muitos anos depois, retoma o filme inacabado, o questiona, se questiona e é questionado. Não foi possível manter a plenitude dos sonhos do passado. Fez e fizeram um outro filme. Tem nas mãos novas questões e possibilidades. Trabalhar o cotidiano em tempos diferentes parece-me o grande desafio do diretor, que é permanentemente questionado pela sua personagem. Do livro da jovem Bárbara para o filme concluído anos depois, espaços diferentes de infinitudes poéticas e questões quanto à formação da jovem que se tornou mulher e também artista.
O realizador trabalha o estar no mundo como um fenômeno de vontades contraditórias. Sutil, joga bem com o tempo se afastando de processos mecânicos muito comuns usados nas televisões, onde o afeto e a paixão viram papel higiênico. Bárbara, jovem, doce e sedutora, é hoje uma forte mulher amadurecida. Tem em seu rosto as marcas vivas do tempo. Amou, foi amada e não se reconhece no livro da escritora. É o tal caso, quando e onde a presentificação do passado pode ser necessariamente, em termos individuais, um documento de verdades? Todo jovem tem o direito de ser como é, antes de entrar nos muitos horrores da vida, nos sistemas existentes. Sistemas que vivem da negação do humano e do afeto.
O doce segredo de Bárbara foge da pretensão de ser um filminho comum, sem nexo profundo com o processo de criação. Daí a sua ligação com o movimento do tempo e das palavras. Ainda ontem, imagens silenciosas de um filme interrompido por diversos motivos. Hoje, o mesmo filme metamorfoseando o tempo numa experimentação dura e ao mesmo tempo comovente, em que todos se questionam. O genial Nicholas Ray dizia: “Todavia, é ofício do diretor expor a si mesmo, em quaisquer maneiras que forem necessárias, a fim de se comunicar – seja diretamente ou por meio das performances de outros artistas”. E é por onde trilha este delicado curta de Paulo Augusto Gomes, redimensionando amorosamente a grande dama tchekhoviana do teatro mineiro.
Ela está quase sempre fumando em plano próximo, falando do vaivém do filme concluído agora. Não é um ajuste de contas, mas necessários encontros afetivos para um recomeço. Um esforço bem-sucedido para explicitar encantamentos poéticos. E o diretor vai preenchendo seu delicado curta com muitos abismos subjetivos, palavras, questões e conceitos. O curta nos faz viver o encontro produtivo e criativo com seus “velhos” atores, mais a presença da fotografia viva e criativa de Fábio Carvalho, e a montagem musical de Isabel Lacerda. Juntos, restauram os signos metafísicos do tempo que passou, em conexão com uma forma ampla de liberdade narrativa, onde tudo pode ser questionado. E onde tudo é questionado.
Paulo Augusto Gomes faz um filme de linguagem, tendo como referência teórica o cinema de Humberto Mauro, seu mestre e inspirador. Coeso, rompe com egoísmos e vaidades, deixando florescer o coletivo. É um pequeno-grande curta autoral que é de todos, servindo ao difícil autoconhecimento de cada um. E aí, o que está em questão é a relativização de cada participante e o cinema. Ora, o que significa criar subjetividades no cinema? A apreensão crítica desses valores nos leva a quê? Tudo está em xeque, da imagem ao espectador. E, na ideia de O doce segredo de Bárbara, o autor parece querer nos dizer que não está à venda. Nem é a última Coca-Cola gelada do deserto.
É um pensador que fala sério de costas para o quadro, apostando na sensibilidade de quem for ver. Uma radical desconexão com a ignorância televisiva se processa delicadamente, pois o filme a ser continuado ou concluído não é uma novelinha. Mas quase uma instalação de tempos não enraizados numa ideia única de certeza. Claro que o espectador televisivo corre o risco de se perder. Mas pouco importa que não seja um filme fácil, pois se lida com a linguagem como expressão do ser humano como paisagem. E é esse princípio de descompromisso com uma apaziguação de ânimo que o torna provocador e solar. Feminino e familiar, sem artifício técnico algum.
Sua contribuição ao cinema talvez seja ser um criativo vaivém de tempos intensos e indeterminados potencializando desestabilizações de certezas. E o feminino, que já foi um abismo de contradições e prostituição, é no curta de Paulo Augusto Gomes um espaço movediço de uma linguagem autoral. Um questionamento imaginativo na reconstrução de um filme delicado e amoroso. Ainda bem.
Humanismo de vitrine Vivemos num tempo infinito de subprodutos, da mídia à política. No cinema, então, nem se fala. O lixo predomina na inesgotabilidade de muitas certezas. Por que esse irracionalismo de editais, partidarização, burocratas, papelotes, espaços ocupados, concursos, fascismos, televisões e as multinacionais da informação? Isso tudo não parece ser uma nova forma de censura policial-militar? Não anda faltando discernimento aos nossos homens ligados à cultura? Faz algum sentido essa fanfarronada tropical baixa, que vem desde a ditadura? Sem remorso torturando, proibindo, excluindo e até matando, se necessário for?
Claro que os sabujos sem talento algum vão defender tudo e todos. É o tal humanismo de vitrine. O que eles acham que é a nossa idade de ouro! O que, em Paulo Emílio, era verdade e uma revolução, nos seus poucos e porcos “seguidores” é um real massacre do saber e a história indissociável da traição. Mas acham os velhos e novos fascistas que nunca vão apodrecer e morrer. E muitas são as cicatrizes deixadas pela burocracia e pela autoafirmação de idiotas no nosso pobre e empobrecido cinema brasileiro. E o que deveria ser uma luta por ideias e sonhos acabou virando um desejo agonizante pelo capital que tudo justifica, compra e corrompe.
Décadas depois, juntando-se a Fábio Carvalho e Isabel Lacerda como técnicos ousados e inventivos, e sua delicada atriz Yara de Novaes, agora madura, questionam o argumento, o tempo, o dinheiro e o próprio realizador que se justifica. Não apaziguando contradições, mas transcendendo tristezas e a má consciência viva e vivida no país de todos. O doce segredo de Bárbara talvez seja um dos curtas mais ousados e sinceros concluídos nos últimos tempos.
O filme passou a ser um enigma a ser decifrado. Multiplicaram-se as contradições. A jovem atriz que interpretava Bárbara é hoje uma revelação no teatro, trabalhando com o grupo Galpão em Belo Horizonte. Inventiva, dilacera o seu passado como personagem do filme em questão. Só que a imersão é coletiva, numa feliz dissolução de certezas. Um novo filme teria que surgir num desengajamento do passado, sem perder as referências do tempo, transformado também em personagem. E o que poderia ter tido um desfecho desconfortável reaparece ousado, original e criativo, cortando na própria carne. O doce segredo de Bárbara é um mergulho fundo e vitorioso na impermanência de estabilidades e certezas.
Paulo Augusto e sua personagem tentam encontrar novos caminhos. Mauro foi o ponto de partida. Apesar de bem-intencionado, o filme parou por falta de apoio, dinheiro e de um país menos emburrecido. Desalienação, aqui, segue sendo algo proibido. Incompreensível viver com isso, com tudo sempre sendo refeito de cima para baixo. Aqui, é o lixo humano que ocupa cargos na cultura, nas agências reguladoras, nas secretarias de cultura e nos ministérios. A utopia de um cinema inventivo vivido intensamente no passado deu lugar a um frágil classicismo de direita com todos os filmes comuns, iguais e televisivos.
Felizmente, não é por onde trilha O doce segredo de Bárbara, que cuidadosamente foi sendo reconstruído em tempos distintos. E, como dizia Brecht: “Nenhum realista deve conformar-se com a repetição do que já sabe: isso não demonstra uma relação viva com a realidade”. Com isso, Paulo Augusto rompe com uma representação previsível e joga-se numa totalidade feliz, extensiva à vida e ao cinema. E, na ânsia do visível, novas referências se apresentam, de Brecht a Godard. De Mauro, a complexidade de um cinema de linguagem. A linguagem do excesso. Da corporeidade poética e das excrescências do país de todos.
Quanto ao discurso amoroso, com sinceridade, ontem e hoje é a mesma e eterna busca de gozos e explosões criativas. Mas somos todos cúmplices de formações criminosas, promovendo futilidades como celebridades, festas, sucesso – e não o gozar. Ora, vê-se singularidade facial em algum político, comunicador, religioso, ator ou pensador? Todos se parecem! Também não adianta culpar A, B ou C, pois somos todos responsáveis por esse mecanicismo da mídia e da educação. Um novo ardor predomina na vida de todos: o ser-mercadoria! A puta de luxo que faz sucesso e vira periguete na TV. Mas como sabiamente afirma Hannah Arendt: “Jamais se pôs em dúvida que verdade e política não se dão bem e até hoje ninguém inclui entre as virtudes políticas a singularidade”.
Para dar um ponto final: O doce segredo de Bárbara é de uma gritante dignidade de sobrevivência da criação e do cinema. É como diz o filósofo Kant, defendido pelo querido Pedro Bento: “Todas as coisas que podem ser compradas podem ser trocadas e têm um preço; aquelas que não podem ser compradas não têm preço, mas dignidade”. E é por onde vai Paulo Augusto e sua trupe: onde o suporte simbólico passou a ser o tempo. Um tempo que traz a assinatura de um cinema inventivo de transmissão de afetos. O realizador o incorpora à vida de todos.
Luiz Rosemberg Filho é cineasta e teórico. Entre seus principais filmes, estão A$$untina das Amérikas, Crônica de um industrial e O santo e a vedete. Organizou e publicou livro de entrevistas traduzidas de Jean-Luc Godard.
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