sábado, 15 de dezembro de 2012

De fato e ficção - João Paulo‏

Estado de Minas: 15/12/2012

Dois livros lançados recentemente, por caminhos diversos e intenções quase opostas, trazem ao leitor motivos para reflexões importantes sobre a paz. Mais que nunca, precisamos de paz. A sensação de que estamos cercados por tumultos de toda ordem tem tornado a vida pesada, temperada de ansiedade e de certo fastio de viver. O barulho é muito, a educação é pouca. O tempo da delicadeza está cada vez mais distante dos nossos dias.

A leitura, nessas horas, costuma ser um dos poucos caminhos capazes de trazer tranquilidade ao espírito. Nosso tempo é do imediato. Arte boa é a que diverte, distrai e consola. A literatura tem uma temporalidade diferente, ela primeiro precisa dominar nosso ritmo de pensamento e emoção para, só então, começa a funcionar. Somos habitados pela leitura e, por isso, como queria Borges, ler é uma atividade mais divertida que escrever, já que não aprisiona em um único sentido.

Os livros que me fizeram pensar que é tempo, mais que nunca, de procurar a paz, são Onde está tudo aquilo agora? – Minha vida na política, de Fernando Gabeira; e O pacifista de John Boyne. O primeiro é um volume de memórias, o segundo um romance de ficção. Gabeira é brasileiro, Boyne é irlandês. As lembranças do jornalista brasileiro são da segunda metade do século 20; o romance de Boyne é ambientado, em sua maior parte, nos anos 1910-1920.

Como todo romance quer ser história, Boyne cria personagens que parecem reais; como todos os livros de memória querem merecer o título de arte, Gabeira capricha no modo de contar. O pacifista, assim, parece um livro de história da Primeira Guerra Mundial pelo olhar de dois amigos. Onde está tudo aquilo agora? é um depoimento que se lê como um romance, embora tenha o desprestígio ou melancolia de narrar coisas acontecidas de fato.

A ideia de paz, que marca presença desde o título da novela de John Boyne, é também o contratexto do livro de Gabeira, um político que pegou em armas para combater a ditadura e foi aprendendo com o tempo que a paz é uma arma muito mais poderosa, embora também de mais difícil domínio. O pacifista é um livro sobre guerra; Onde está tudo aquilo agora? um exercício de memória. No horizonte, a certeza de que não estamos prontos para a vida até que a cortina do real se abra.

Duas perguntas

No fim dos anos 1970, o jornalista Fernando Gabeira voltava ao Brasil nos braços da conquista da anistia pela sociedade brasileira. Militante de organizações de esquerda, ele havia participado do sequestro do embaixador norte-americano. Foi preso, torturado (num sinal de elegância humana nunca descreveu as sevícias que sofreu, embora tenha sido corajoso para denunciar o que foi feito aos colegas) e, por fim, exilado em troca da vida de outro embaixador sequestrado. 

A volta ao Brasil fez de Gabeira uma espécie de testemunho do presente. Depois de prestar contas do passado recente no precioso O que é isso, companheiro?, começou a registrar em livros suas mudanças pessoais e as transformações da sociedade brasileira. Escreveu-viveu sobre machismo, modelos familiares, estilo de vida, violência contra a mulher. Homem político, passou a compartilhar com o país outra revolução, que deixava os signos socialistas do vermelho para se colorir do verde da ecologia.

O destino de Gabeira foi semelhante a de outros companheiros de geração, aqui e em outros países, que passaram a refletir sobre o que haviam vivido e a buscar novos modelos de convivência humana, felicidade coletiva e atitude política. É esse movimento que se acompanha nas páginas de Onde está tudo aquilo agora?. Com o mesmo empenho em perguntar, ainda que a outros companheiros, o jornalista e político parece afirmar que continua sem certezas absolutas. Humildade, em alguns momentos, é a única saída que nos resta. 

O livro é curto, não chega a 200 páginas, mas reúne histórias que vão da infância em Juiz de Fora aos dias de hoje. Gabeira, depois de recuperar rapidamente o que já havia registrado em outros livros, concentra suas reflexões sobre sua trajetória política no parlamento e nas campanhas majoritárias das quais participou no Rio de Janeiro. Narrador distinto, constrói sua história pessoal com fatos, avalia alguns reveses históricos recentes dos quais participou, julga, sem temor, os canalhas que lhe cortaram o caminho.

Há em Gabeira uma atitude que conquistou admiração até dos adversários: a capacidade de expor seus princípios e lutar por eles. O fato de sua investidura na vida pública se dar em torno de projetos, e não de votos conquistados em acordos e frutos de interesses, deu a ele uma mobilidade libertadora. Mas nem por isso sua atuação foi fácil, sobretudo quando se tratava de questões que afetam o que de mais sagrado o conservadorismo brasileiro cultua: o estilo de vida burguês e o senso de propriedade. Sem ser libertário nem comunista, Gabeira trouxe para a vida pública brasileira uma coerência importante em temas como a ecologia (como instrumento de garantia de sustentabilidade e preservação, o que afronta os cultores do progresso) e o comportamento (na defesa, por exemplo, da dignidade das prostitutas).

Livro que mira o passado, Onde está tudo aquilo agora? parece anunciar uma nostalgia de tempos de mais consistência. As esperanças do passado estão lá atrás esperando para ser resgatadas. Não melhoramos como gente, mas pelo menos temos a força criativa das memórias.

Outra guerra

O pacifista, de John Boyne é um romance que impressiona desde as primeiras linhas. O autor irlandês ficou conhecido mundialmente com o livro  O menino do pijama listrado, que conta a história da amizade de dois garotos, um judeu encarcerado num campo de concentração e um alemão, filho do diretor do campo de trabalhos forçados. A inocência dos meninos é o contraponto do horror que destrói todas as possibilidades de redenção.

Em O pacifista o escritor recua até a Primeira Guerra Mundial para narrar outra história de amizade entre dois homens, desta vez rapazes incorporados ao Exército inglês. Tristan Sadler, um jovem londrino de 21 anos, resolve, depois de perder o amigo William Bancroft em circunstâncias que só serão reveladas ao final da narrativa, procurar a irmã dele em Norwich, com o objetivo de devolver a ela as cartas das quais se tornara portador.

Escrito com delicadeza e melancolia, o romance vai deixando entrever, em meio aos diálogos, uma história de violência da qual a guerra é apenas um dos motivadores. Em capítulos que intercalam o tempo da guerra e o encontro entre Tristan e a irmã de Will, vai sendo desenhado outro enredo, feito de preconceitos, falsidades e sombras. Na guerra, nada é o que parece ser. Na vida em tempos de paz, a ausência de certezas é ainda mais perversa.

O pacifista é um livro político. Sua mensagem, feita de muita dor e perda, mescla todas as inclemências do militarismo, da convenção, da religião, da razão e da psicologia, para propor um olhar mais profundo sobre as relações humanas. Não saímos em paz da leitura. A grande paz é a que nos deixa sempre em estado de exasperação. A mais extrema das situações não é a guerra, mas a batalha que faz parte do coração do homem.


jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

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