O Globo - 15/12/2012
Num livro excitante, para dizer o mínimo, que estou lendo, e que se chama “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”, de David Foster Wallace (que se suicidou em 2008, aos 46), há um ensaio sobre Roger Federer. Nele, Wallace diz que “o tênis na TV está para o tênis ao vivo como um vídeo pornográfico para a real sensação do amor humano”. Eu, que sou um curioso pelo tênis, que gosto de ver partidas pela TV, e que sou um fã total de Roger Federer, comemoro o fato de que o livro tenha chegado às minhas mãos no mesmo momento em que Federer chegou a São Paulo para algumas partidas-exibição. Shows nada sérios, do ponto de vista competitivo, mas ainda assim uma demonstração espetacular do que é o tênis máximo visto ao vivo.
Wallace comenta uma obviedade que a gente fatalmente esquece, quando vê tênis na TV. É que, para dar uma visão abrangente da quadra e da “geometria geral da troca de bolas”, o ângulo obrigatório é o de cima e de trás de uma das linhas de fundo, de onde a gente ocupa a posição virtual de um espectador que olhasse do alto para baixo. Essa perspectiva engorda e encurta a quadra, além de transformar a potência rebelde e incandescente da bola real num ponto neutro de luz riscando a tela, num ritmo já domado pelo olhar. Independente da propriedade da comparação feita por Wallace, o efeito está muito mais para o videogame do que para o vídeo pornográfico.
Eu queria ter, e tive, a experiência fascinante do susto produzido pela fisicalidade do jogo quando somos expostos, de um ângulo lateral e horizontal, à visão da potência e da velocidade da bola (que “é de meter medo”), e às reações instantâneas do jogadores tentando manipular o espaço e o tempo. Tive o cuidado de chegar no começo da partida preliminar, entre Bellucci e Tommy Robredo, para me aclimatar previamente à rotina do jogo, e para fruir, com a chegada de Federer, em disputa com Tommy Haas, a sensação da passagem do humano ao divino (o texto de Wallace chama-se “Federer como experiência religiosa”).
Por que divino? A explicação inicial pode ser bem básica e material: pela televisão, não fazemos ideia “da força com que esses profissionais batem na bola, da velocidade em que a bola está se deslocando, de como é curto o tempo que eles têm para alcançá-la e da agilidade com que são capazes de se mover, girar, rebater e se recuperar”. A continuação é óbvia: “nenhum é tão veloz nem faz isso parecer tão enganosamente fácil quanto Roger Federer”. E a decorrência metafísica: Federer é um desses “raros atletas preternaturais”, da ordem dos mutantes e dos avatares, “que parecem ter sido dispensados, pelo menos em parte, de determinadas leis físicas”, para quem a bola “flutua um décimo de segundo a mais do que deveria”, que assistem em câmera lenta ao jogo que disputam em alta velocidade, como se não suassem, enquanto os jogadores normais sofrem em alta velocidade o jogo que disputam em câmera lenta.
Mas só a televisão consegue mostrar uma dimensão frontal que a visão lateral esconde: a capacidade do jogador de “enxergar, ou criar, aberturas e ângulos para golpes vencedores que ninguém mais consegue visionar”. Na TV podemos visualizar o traçado geométrico do jogo se urdindo, golpe a golpe, até o bote de misericórdia, embora percamos muito da sensação de urgência e do peso da bola, e das modalidades que a fazem variar entre devolução chapada, a “chicotada líquida” e os efeitos pelos quais ela pode ir “mudando de forma no ar” e acabar escorregando insidiosamente sobre a quadra na altura do tornozelo do adversário.
Como se no tênis, assim como na observação subatômica da matéria, estivéssemos limitados, enquanto espectadores, a saber ou bem a velocidade de um elétron ou a bem a sua posição. A experiência toda me fez pensar que o tênis é, entre todos os jogos de bola, aquele mais próximo de uma redução quântica, fisicamente pura, da nossa imersão no mundo, como se ele instaurasse a simulação de um acelerador de partículas ao qual o tenista de ponta conseguisse responder ou corresponder, no caso de Federer com a máxima eficácia e a manifestação extrema da beleza cinética. O que equivale, beleza e eficácia reunidas, à conciliação da partícula com a onda, e a “reconciliação do ser humano com o fato de possuir um corpo”.
Dito isso, continuo perseguindo no livro de David Foster Wallace as pistas enigmáticas do seu suicídio. Inutilmente, é claro. Um lindo discurso de paraninfo, entre seus escritos, não leva a crer que aquele jovem professor de literatura se mataria. Mas talvez ele estivesse, na vida, demasiado dentro do jogo, na posição da própria bola, e ao mesmo tempo, como o título indica, longe do fato de estar meio longe de tudo.
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