ALDO PEREIRA
RESUMO A ordem dos jesuítas, a que pertence o papa Francisco, marcou a história por sua devoção ao saber e pela presença em conturbações como a Reforma e os desdobramentos socioeconômicos dos descobrimentos. No entanto, em quase 500 anos, só agora tem sua importância reconhecida no pontificado.
Nos mais renomados dicionários de línguas europeias, verbetes correspondentes a "jesuíta" incluem acepções como esta, do "Houaiss": "Que ou aquele que é dado a intrigas; dissimulado, hipócrita". O registro não teria surpreendido os fundadores da Companhia de Jesus pela irreverência, mas a palavra em si os intrigaria: eles próprios nunca se chamaram de jesuítas.
Na tomada de Pamplona por invasores franceses em 1520, por pouco uma bala de canhão não decepou a perna direita do libertino e aventureiro fidalgo Inácio de Loyola (1491-1556). Durante meses de penosa convalescença num castelo, sua única distração foi ler um livro sobre a vida de Jesus e outro de biografias de santos. Estas conjugavam dois estilos em moda: hagiografia e romance de cavalaria.
Impressionado, Loyola doou espada e adaga como ex-votos à Virgem de Montserrat, na Catalunha, e se deu a mendicância, autoflagelação e estudo. Peregrinou, vagueou e, em Paris, diria ter tido uma visão na qual Jesus ouvia Deus lhe determinar que chamasse Loyola a servi-los. Decidiu ordenar-se padre.
Quando se ordenaram em Bolonha, em 1537, Loyola e discípulos cogitavam criar uma ordem própria alicerçada em certos princípios do etos militar: treinamento rigoroso, obediência incondicional ao superior e ao papa, observância intransigente dos votos de pobreza e castidade (a ordem nunca admitiria mulheres).
A instituição formalizou-se em Roma, três anos depois, com aprovação explícita do papa Paulo 3º, seguida de eleição de Loyola como superior-geral. (Quando substantivo, o termo "general" denota noutras línguas europeias a patente militar; quando adjetivo, denota "geral". Em português, os jesuítas optaram pelo título "superior-geral", mas os seguidores de Loyola o tratavam como "general".)
Loyola morreu aos 65 anos, em 1556. Tinha sido tão poderoso e imperioso que a ele se atribuiu o epíteto pejorativo de "Papa Negro", em alusão à cor da batina preta (contrastante com a branca do papa) e a maquinações malignas que desafetos lhe atribuíam.
No início a Companhia assistiria o Santo Ofício (Inquisição) que os dominicanos vinham exercendo desde 1480. Mas o mundo legado por Loyola impunha outras prioridades. Em segredo reprimido pela Inquisição, a elite científica europeia descobrira a redondeza do mundo. Combinado com progressos da astronomia, navegação, engenharia naval e artilharia (Galileu vendia serviços especializados de balística), esse conhecimento redistribuiria os poderes do mundo.
Em paralelo com o ouro, itens como especiarias, açúcar e escravos revolucionaram o comércio de commodities e a alquimia bancária. "Player" nesse jogo, a Santa Sé logo destacaria os diligentes jesuítas para exploração e defesa de seus interesses.
Dois outros fatores complicavam a concorrência: a ebulição intelectual advinda da industrialização da escrita, processo iniciado por Gutenberg pouco mais de um século antes, e o ódio sectário deflagrado pela Reforma protestante.
Um dos primeiros sucessos foi o de Francisco Xavier no Japão. Ele obteve do senhor feudal Omura Sumitada, a quem batizara, direitos proprietários sobre o porto de Nagasaki. Por ali transitaria o rendoso comércio do Portugal católico com o Japão.
Em 1572, Gregório 13 (o do calendário) concedeu à Companhia o privilégio exclusivo de operações bancárias. Para ganhar know-how, a Companhia se associou a organizações de judeus, muitos dos quais, para trânsito mais fácil, se diziam cristãos-novos e adotavam nomes não judeus. Exemplo, o donatário Fernão Pereira Pestana de Loronha, erroneamente registrado na história do Brasil como Fernando de Noronha (c. 1470-1540).
Além desse expediente, judeus perseguidos pelos reis católicos de Portugal e Espanha tinham migrado para a Holanda com seus
saberes de comércio, relações internacionais e capital. Menos de um século depois, a Holanda despontava nos oceanos como potência rival da Inglaterra, da Espanha, da França e de Portugal. Algum papel para os jesuítas nesse novo episódio do comércio colonial?
O necessário sigilo de muitas atividades da Companhia na época tem favorecido confuso retrato dela, mistura de fatos com inferências e hipóteses que vão do plausível ao paranoide. Que ligações teria havido, se alguma, entre jesuítas e a Companhia Holandesa da Índia Oriental, a Companhia Holandesa da Índia Ocidental, o Bank of the Manhattan Company (hoje JPMorgan Chase & Co.), negócios da família Rotschild e o banco suíço Lombard Odier Darier Hentsch, que marca presença hoje também em Hong Kong?
Que papel teria tido a Companhia, se é que teve, na invasão da Itália por Napoleão e na decisão de ele prender o papa Pio 6º, que morreria no cárcere mês e meio depois? Mistérios possivelmente espessados por delírios conspiratórios. Mas em que medida?
EDUCAÇÃO Na visão abrangente dos jesuítas, logo sobressairia também a importância da educação, que os protestantes vinham mostrando ser instrumento eficaz de doutrinação e colonização. Antes, a diretriz católica favorecera o obscurantismo, com perseguição de cientistas e racionalistas. Era crime capital traduzir a Bíblia do latim para vernáculos.
O teólogo John Wycliffe (c. 1330-1384), que desafiara a proibição com ajuda de colaboradores, escapou. Mas, 44 anos depois de morto, a Igreja o condenou e mandou esparzir num rio as cinzas de seu esqueleto, que ela tinha mandado exumar e incinerar.
Em contraste com louvações católicas da pobreza, o etos protestante valorizava a educação e o enriquecimento advindo dela. A princípio relutante, Loyola ao morrer reconhecera essa opção e comprometera sua Companhia com a vocação educativa que ainda hoje ela prioriza.
EXPULSÃO No século 18, o poder econômico e político da Companhia acabou por colocá-la em conflito com realezas coloniais europeias, mesmo as católicas. A linha antiescravagista da Companhia escasseava e encarecia os braços necessários ao trabalho em minas e canaviais.
Em 1758, o Marquês de Pombal, que governava Portugal para o vacilante rei José 1º, expulsou do império os jesuítas. França e Espanha logo o imitaram. Tão resoluta insubordinação convenceu o papa Clemente 13 a dissolver a Companhia, mas ele morreu na véspera do dia em que baixaria a decisão. Envenenamento continua sendo hipótese não provada.
Clemente 14, sucessor de Clemente 13, conduziu o caso com mais prudência. Após quatro anos de manobras diplomáticas, emitiu um breve (breve é forma simplificada de bula) que determinava a extinção da Companhia. Imediato confisco dos bens e precavido encarceramento do superior-geral Lorenzo Ricci facilitaram o cumprimento da decisão.
Mas a morte do papa no mês seguinte gerou especulações que, como no caso de seu antecessor, continuam tão controvertidas quanto as que adviriam da morte de Ricci, dois meses depois. (Entre risadas, na semana passada o papa Francisco revelou à imprensa ter rejeitado a sugestão de, como fiau a Clemente 14, ele optar por chamar-se Clemente 15.)
A reconciliação entre o papado e a Companhia sobreviria em 1814. Mas no século 19 e primeiras décadas do 20, jesuítas se viram expulsos e até martirizados em numerosos países: Alemanha, Áustria, Bélgica, China, Equador, Espanha, França, Galícia (ucraniana), Itália, Madagascar, México, Portugal, Rússia, Síria, Suíça.
HOJE Em números redondos, a Companhia congrega, em mais de cem países, uns 14 mil sacerdotes, 2.000 irmãos (membros leigos) e 4.000 escolásticos (termo que corresponde ao de seminaristas). Já foram mais: em meados do século 20 a ordem compreendia pelo menos 26 mil membros. Tipicamente, a formação de um padre jesuíta leva 15-20 anos, ou mais, o que dificulta a reposição do efetivo.
Rancores subsistem, mas aos poucos a cinza se espessa por cima das brasas. Hoje o mundo já não se pergunta tanto o que é e o que faz a Companhia, mas o que ela fará do poder aumentado que agora assume com o espírito do padre-general pairando sobre o trono milenar dos papas.
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