Albert Hirschman (1915-2012), algumas lembranças esparsas
A notícia da morte de um amigo é sempre desagradável. Por mais que se espere, por mais que se saiba que a pessoa já pouco responde aos estímulos e por mais agnóstico que alguém seja, sempre estamos à busca de algum milagre, uma melhora inesperada. Quando soube por Roberto Schwarz, outro amigo e admirador de Albert Hirschman, de sua morte, confesso que meu coração se fez pequeno, encolheu.
A notícia chegou meses depois de outra, mais surpreendentemente ainda, dando conta de que a querida Sarah também se havia ido. Senti como se um pedaço de minha própria história estivesse desaparecendo, tão grande foi a influência do casal sobre mim, minha mulher, Ruth, e sobre alguns amigos próximos.
Albert Hirschman foi uma figura notável. Discreto, de uma vaidade envergonhada, tratando de não assumir seu esplendor intelectual, deixou germinando sementes na cabeça de gerações de intelectuais nos Estados Unidos, na Europa e principalmente na América Latina. Sua figura humana, gentil e persuasiva, deixava, quase sem que se percebesse, marcas profundas nas pessoas que com ele conviviam ou pensavam haver convivido, tão grande havia sido a influência de seus escritos.
Conto um episódio, para exemplificar. Certa vez eu estava em Nova York com meu filho, Paulo Henrique, e um colaborador, o diplomata Tarcísio Costa, quando resolvi visitar o casal Hirschman. Ambos se dispuseram imediatamente a me acompanhar. Tarcísio lera trabalhos de Albert, que o influenciaram na elaboração de seu doutorado em Cambridge. Paulo tinha apenas a memória de quando era criança, no Chile, e adolescente no Brasil quando cruzara com ele. Queríamos vê-lo, mais do que para reverenciá-lo -pois Albert sempre manteve distância da bajulação-, para desfrutar do prazer da conversa.
Qual não foi nossa surpresa ao chegar a sua casa em Princeton (a mesma casa a que acorri tantas vezes nas oportunidades em que nos anos 1970 fui "fellow" do Institute for Advanced Study) ao vê-lo elegantemente trajado, sorridente, mas pouco propenso a falar. A doença já havia feito seus efeitos devastadores sobre o espírito daquela figura luminar. Não obstante, deu-nos prazer sentir que em sua quase mudez, continuava com o olhar expressivo e vez por outra murmurava algo quase irônico a respeito do que conversávamos.
Num dado momento eu recordava que em 2004 fizera uma palestra por ocasião da graduação de estudantes de Brown, entre os quais se formava um neto de Hirschman, e o avô assistia à cerimônia. Sem saber do neto nem da presença do avô, apoiei-me em seus conceitos de "voice", "exit" and "loyalty" para justificar minha interpretação sobre acontecimentos políticos no Brasil.
Ao ouvir-me contar a história e a referência a seus conceitos Albert abriu um sorriso. Em seguida me perguntou o que eu fazia na Universidade Brown, ao que contestei: "Sou 'professor at large'". "O que é isso?", retrucou. "Ah, são professores que não têm obrigações regulares de dar aulas, fazem alguns seminários e, de vez em raro, dão uma aula magna." Hirschman sorriu novamente e meneou a cabeça com alegria. Era do que ele gostava. Nunca apreciara dar demasiadas aulas nem falar muito...
Não obstante, como seu ilustre biógrafo Jeremy Adelman corretamente assinala, Albert Hirschman era um "bricoleur" de palavras, se extasiava quando as via usadas apropriadamente, e, sobretudo -gosto raro- se deliciava com os palíndromos, com as palavras que guardam o mesmo sentido se as frases são lidas de trás para frente como de frente para adiante. E isso ele fazia com os vários idiomas que lhes eram familiares.
Conhecia a gramática das línguas que usava, tinha o prazer estético de bem escrevê-las, mas a pronúncia denunciava a raiz germânica de quem as falava. Salvo no francês em que às vezes conversávamos e, talvez, no italiano, de que ele tanto gostava, mas que eu nunca o ouvi falando. Nos escritos, entretanto, era mestre. E corrigia o dos outros, como fez comigo algumas vezes, sem falar dos contínuos ensinamentos e correções de minha precária gramática inglesa.
Lembro-me bem certa vez, creio que em Atlanta, em um encontro da Lasa (Latin American Studies Association) em que eu fiz de improviso (mas estudado...) uma conferência em espanhol sobre "O consumo da teoria da dependência nos Estados Unidos". Albert, com seu jeito amável de fazer correções, comentou comigo diante de Sarah: que bom você só uma vez trocou o verbo haver por ser...
INOVAÇÃO Esse intelectual preciosista, sempre afim com a busca do belo, foi também um inovador. Não é o momento para fazer um balanço das inúmeras contribuições de Hirschman ao pensamento contemporâneo. Mas cabe ressaltar, no que diz respeito à América Latina, que sua visão abriu caminhos. Desde sua estada na Colômbia, Hirschman lutou contra o que ele chamava de "fracassomania", o pessimismo larvar que dificulta perceber as mudanças que estão ocorrendo.
Tinha, como no título de um de seus livros escritos posteriormente a sua estada em Bogotá, "a bias for hope". Tanto quanto chamar a atenção para o inesperado de ver em países "subdesenvolvidos" ilhas de excelência e modernidade (como ele mostrou, por exemplo, ao falar de uma companhia local de aviação), insistiu em manter o otimismo como perspectiva mais auspiciosa.
Quando todos nós, intelectuais da região, inspirados por modelos ocidentais, víamos obstáculos ao desenvolvimento, Hirschman escreveu um famoso artigo sobre os "obstáculos para enxergar o desenvolvimento". Contrariando a noção estabelecida de que a busca de equilíbrios seria a pré-condição para o desenvolvimento, Albert Hirschman insistia em que às vezes são os desequilíbrios que desencadeiam necessidades de investimento e põem em marcha sequências positivas. Estas podem se encadear "para frente" ("forward linkages") ou para trás ("backward linkages") levando a sucessivas transformações positivas.
A existência de recursos naturais inexplorados, por exemplo, pode suscitar inovações tecnológicas que levem a sua valorização, a despeito da penúria de capitais. No livro "Strategies for Economic Development", de 1958, Hirschman expõe suas idéias sobre desenvolvimento econômico de maneira muito criativa.
A primeira oportunidade que tive de estar com Albert Hirschman foi no apartamento de Alfred Stepan em Nova York, em 1964, quando Stepan era jovem assistente do departamento de ciência política na Columbia e Hirschman professor em Harvard. Encontrei-o novamente mais tarde, em Santiago do Chile, lá pela segunda metade dos anos 1960.
Em certos círculos intelectuais -algo críticos das teorias estruturalistas sobre o desenvolvimento econômico desenvolvidas pela Comissão Econômica da América Latina (Cepal), órgão da ONU- predominava na época a visão de que as cidades do "Terceiro Mundo" estavam cercadas por uma maré de populações "marginais". Faltaria ao capitalismo do subdesenvolvimento a capacidade dinâmica de absorvê-las.
Estavam na moda na AL as "grandes teorias" a respeito de um peculiar "capitalismo dependente", a que Enzo Faletto e eu nos opúnhamos. Achávamos que, se as situações eram de dependência, o capitalismo, entretanto, era o mesmo, com desdobramentos específicos nos países menos desenvolvidos, mas não essencialmente distinto de como se manifestava no Primeiro Mundo.
No afã de substantivar nossas interpretações, escrevi com um então jovem intelectual mexicano, o hoje embaixador José Luis Reyna, um artigo comparando a estrutura do emprego na América Latina, nos EEUU e na Europa. Mostrávamos que as tendências de diminuição do emprego no setor agrário, sua expansão limitada no setor industrial e acelerada dos serviços, se variavam de intensidade na comparação, não destoavam quanto à direção. Portanto, era precitado sustentar a ideia de que havia obstáculos estruturais à inclusão social na América Latina.
Dei o artigo a Hirschman, que, regressando aos Estados Unidos, de lá me enviou uma carta encorajadora, na qual dizia com generosidade que nossas mentes eram irmãs... Exagerava, por certo, mas aumentou muito a confiança que eu tinha na minha visão crítica, mas não pessimista, quanto às possibilidades de transformação das economias e sociedades latino-americanas.
Lévi-Strauss, em um de seus escritos, diz que antes de começar a escrever algum livro de maior fôlego relê autores que o inspiram e cita o "Dezoito Brumário de Napoleão Bonaparte", de Marx. Pois bem, mal comparando e já me desculpando pelo que poderia parecer pretensão, digo com sinceridade: foram incontáveis as vezes nas quais reli algum capítulo de Albert Hirschman para preparar um artigo ou uma conferência.
Sempre procurei conter ímpetos de cair na tentação de lançar mão de interpretações baseadas em "grandes teorias" da história e das ciências sociais ou de me apoiar em "certezas" derivadas de leis gerais da evolução humana ou mesmo, mais modestamente, das regularidades com as quais nos defrontamos na história. A precaução de evitar a crença no inevitável e de abrir espaço para o inesperado busquei-a nas leituras de Albert Hirschman, que mais amava uma dialética sem sínteses do que o automatismo de "leis" de comprovação duvidosa. Não por acaso insistiu tantas vezes em manter certa dúvida metódica, como Descartes, e preferiu apresentar suas interpretações como possibilidades e não como certezas. Favorecia o "possibilismo" para escapar da armadilha das interpretações mecânicas dos acontecimentos.
OTIMISMO CÉTICO Um otimismo cético, se assim posso qualificar, permeou a vida e as obras de Albert Hirschman. Ele sempre procurou olhar temas que pareciam laterais ou tomar fatos que pareciam únicos ou que estivessem isolados do curso geral das coisas para, através deles, iluminar um processo mais amplo, dando mais importância às interpretações com sentido do que a regularidades sensaboronas. Era como se fosse um seguidor de Max Weber, sem o ser, pois nada mais distante da sensibilidade de Albert do que pertencer a uma "escola".
Por isso, no prefácio de um de seus livros traduzidos ao português, "Auto-Subversão", comparei-o aos pintores flamengos do século 15 e 16, Memling ou Van Eyck, que ao pintar, por exemplo, um retrato, pintavam também miniaturas nos cantos da tela e estas desvendavam todo o contexto, fosse uma paisagem rural ou a vista de uma cidade.
Assim são muitas das obras de Hirschman: nelas os assuntos se apresentam como se fossem menores, embora desenvolvidos com precisão, leveza e graça. Ao terminar a leitura fica-nos, entretanto, a impressão correta de que as análises, sugestões e metáforas permitiram compreender processos muito mais amplos do que parecia ser quando iniciamos a leitura. Por trás da aparente singeleza descobre-se uma explicação sofisticada, como se fosse ao acaso, ao modo do que Robert Merton chamava uma "serendipity".
Assim, por exemplo, sua explicação de como foi possível combinar protesto e fuga ("voice" e "exit") na luta dos berlinenses pela volta à democracia. E há inúmeros outros achados, que parecem se referir a coisas de menor importância e que, de repente, o leitor percebe que se trata de instrumentos heurísticos extraordinários, como, noutro exemplo, sua metáfora sobre o "efeito túnel".
SAUDADE Por fim, cabe uma palavra de saudade a esse grande homem cuja vida intelectual não foi maior, por grande que tenha sido, do que o restante de sua biografia. Sua resistência ao nazismo, sua coragem pessoal ao se envolver na resistência, sua sagacidade ao perceber que diante da barbárie nazista não cabia "voice", mas "exit", não para desistir e se acomodar, mas para juntar forças e continuar lutando, são provas disso. Um homem de nosso tempo, mas talhado com o espírito dos grandes renascentistas e que somava a essas qualidades as de um ser humano doce e afetivo.
Era assim que se relacionava com sua Sarah e com as filhas queridas. Assim foi também nos momentos de sofrimento pela morte de uma delas e, sem que se possa saber ao certo se do fato tomou consciência, como teria sido pela brusca perda de quem poderia ter ficado com ele até ao último suspiro, mas deixou-nos antecipadamente. E também com os amigos para os quais sua palavra de estímulo e de simpatia nunca faltou.
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