Luciane Evans
Estado de Minas: 15/04/2013 04:00
Em silêncio, 300 mulheres morrem anualmente no Brasil por cometerem o que hoje ainda é crime no país: o aborto ilegal. Estima-se que de 800 mil a 1 milhão de brasileiras façam o procedimento por ano, muitas delas em condições desumanas, com uso de talo de couve, agulha de crochê e até aspirador de pó para a retirada do feto, o que daria algo em torno de 2,7 mil abortos por dia. Por hora, cerca de 115. Ricas ou pobres, elas encontram na clandestinidade o apoio para dizer “não” a uma gravidez indesejada. São, perante as leis brasileiras, criminosas, com risco de pena pelo delito de um a três anos de detenção. Para muitas, a prisão está na culpa carregada pelo resto da vida ou nas sequelas sentidas pelo corpo, entre elas, a perda do útero. Polêmico, o assunto é questão de saúde pública e o Brasil começa a dar seus passos para retirá-lo do Código Penal e torná-lo um direito da mulher.
O gatilho para a discussão vem com a reforma do Código Penal, para qual o Conselho Federal de Medicina (CFM) manifestou apoio a autonomia da gestante de abortar até a 12ª semana de gestação. Ou seja, a entidade defende que o Brasil não considere o procedimento como crime, garantindo estrutura médica para o ato. O órgão, que representa 400 mil médicos, fez votação entre os conselhos regionais e outras entidades, compostas por médicos, juristas e até padres, e o resultado, divulgado em março, jogou luz sobre o tema. Antes disso, o Conselho Federal de Psicologia já havia se manifestado a favor da descriminalização do aborto, em junho de 2012. Atualmente, o aborto é permitido no Brasil em casos de risco de vida para a mãe, estupro comprovado ou fetos anencéfalos.
“Não queremos que o problema seja de polícia, mas que seja encarado como de saúde pública. São 300 mulheres por ano que poderiam estar vivas se morassem em Portugal, por exemplo, onde o aborto não é crime, assim como na maioria dos países europeus. Quando feito em hospital, o procedimento é mais seguro. Fora dele, elas correm 100 vezes mais riscos”, defende o obstetra e vice-presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Olímpio Morais.
Diante da mudança, que pode ou não acorrer no Código Penal, hoje o Estado de Minas dá início a uma série de reportagens sobre o assunto, revelando um pouco dessa silenciosa realidade brasileira. O tema, que envolve questões de ética médica e pessoal, será tratado aqui como uma questão de saúde, mostrando os riscos e sequelas resultantes de quem faz o procedimento na ilegalidade. Por ser um crime cometido “por baixo dos panos” em clínicas clandestinas ou em casa, a Febrasgo estima entre 800 mil e 1 milhão as mulheres que buscam a prática para interromperem uma gravidez. “É algo comum entre as brasileiras. Até os 40 anos, uma em cada cinco mulheres já usaram o método clandestino. Basta olhar ao lado e contar até cinco: uma dessas mulheres, pelo menos, fará um aborto ao longo da vida. E elas têm o perfil de uma mulher comum: pode ser sua vizinha, sua filha, sua irmã. Casadas ou não, com ou sem religião”, comenta o sociólogo e economista Marcelo Medeiros, professor da Universidade de Brasília (UnB) e um dos responsáveis pela Pesquisa Nacional de Aborto, premiada, no ano passado, pela Organização Pan-Americana de Saúde.
No estudo, ele e antropóloga Débora Diniz, professora do Departamento de Serviço Social da UnB e pesquisadora do Instituto de Bioética, apontam que a maior parte das mulheres no Brasil aborta usando o abortivo misoprostol. “O problema é que nem sempre elas têm acesso ao medicamento com qualidade e na dose certa, e muitas não têm acesso à higiene pós-aborto para evitar complicações, uma das principais causas de internação feminina no país. É um caso de saúde pública, mas tratado de polícia”, diz Medeiros.
>> MAIOR INTERNAÇÃO NO SUS
Por ser considerado crime, não há números oficiais sobre os abortos provocados feitos no país. Mas, ao se submeterem a condições inseguras para o ato, muitas mulheres, de acordo com especialistas, passam mal e são socorridas em pronto-socorros e maternidades, onde, por medo, não informam o motivo de estarem ali. São submetidas à curetagem. Sem distinguir quantos casos foram provocados ou de aborto natural, os órgãos públicos divulgam o número de curetagens uterinas pós-aborto, procedimento médico para a retirada de material placentário ou endometrial da cavidade uterina. Em Minas Gerais, de acordo com dados da Secretaria de Estado de Saúde, foram feitas no ano passado 23.262 curetagens, o que custou ao SUS pouco mais de R$ 5 milhões. Em 2011, os números foram similares.
Os números são considerados altos por médicos especializados em ginecologia e obstetrícia. No Rio de Janeiro, nos mesmos anos, foram cerca de 14 mil procedimentos de curetagem pós-abortamento, de acordo com a Secretaria de Estado de Saúde fluminense. Em Belo Horizonte, foram 2.931 procedimentos, em 2011. Em 2012, outros 2.588. Segundo especialistas, de cada 100 gestações, 20 evoluem para o aborto espontâneo. A maioria não precisa de curetagem. “Do total de curetagem registrado nos estados, 60% são feitos como socorro às mulheres que fizeram aborto ilegal”, estima Olímpio.
Levantamento de 2010 do Instituto do Coração, da Universidade de São Paulo (USP), da médica Pai Ching Yu, e coordenado por Débora Diniz, mostrou que a curetagem depois do aborto foi a cirurgia mais realizada no SUS entre 1995 e 2007. O procedimento foi responsável pelo maior número de internações, com mais de 238 mil registros/ano. A maioria dos procedimentos é da interrupção provocada da gravidez. Além disso, a pesquisa de Débora, com Marcelo Medeiros, apontou que 15% das brasileiras já abortaram e 55% delas foram internadas por complicações.
Depoimentos
M. S. A., de 41 anos
“Não tinha estrutura para ter um filho. Estava com 18 anos e trabalhava em casa de família. Arrumei uma enfermeira, indicada por uma amiga, que me levou para a casa dela. Fui sedada e, quando acordei, ela disse que na minha barriga tinha gêmeos. Chorei muito. Engravidei de novo e tentei abortar. Dessa vez com a tal borrachinha, uma espécie de tubo que eles enfiam na gente. Não deu certo. Cinco anos depois, tive um mioma no útero e o médico disse que pode ter sido causado pelo primeiro aborto. Perdi o útero. Durante seis anos, não saí de casa. Tive depressão e desenvolvi transtorno bipolar. Tentei suicídio duas vezes, porque o aborto sempre vem à minha cabeça. Quando você se arrepende, dói mesmo. Pedi perdão a Deus, mas nunca mais fui a mesma.”
M. A. D. - 40 anos
“Era meu nono filho. Eu e meu marido não tínhamos mais condições de ter mais uma criança dentro de casa. Com cinco meses de gravidez, tomei coragem e abortei. Injetei 12 comprimidos do remédio que provoca aborto e outros dois. Passei muito mal. Tive uma hemorragia intensa. Achei que ia morrer. Fui levada para um hospital e tive uma parada cardíaca. Os médicos me salvaram e retiraram ‘o resto’ do feto de mim. Ele foi embrulhado em um saco de lixo e entregue ao meu marido. Foi a cena mais triste da minha vida. Não tive problemas depois. Hoje tenho 12 filhos.”
Quarta causa de morte
“O abortamento é a quarta causa de morte materna”, diz a ginecologista e professora do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Alamanda Kfoury. Ela explica que quando se faz um aborto por medicamento abortivo, o remédio provoca uma contração contínua no útero. “É uma contração intensa, que faz com que o colo uterino abra e elimine o embrião. Em maternidades e hospitais, ele é usado, por exemplo, em casos de morte embrionária. A paciente é internada e toma a dose certa. Pode ser usado via oral ou intravaginal”, explica. Na clandestinidade, a medicação, que pode ser comprada até pela internet, por cerca de R$ 300, é tomada pela maioria das mulheres que quer abortar. “Porém, sem acompanhamento médico, elas o tomam de forma excessiva e, na maioria das vezes, apresentam hemorragia ou ruptura do útero, podendo até perdê-lo”, alerta a médica.
Outros métodos são a curetagem e aspiração ultrauterina. “São procedimentos cirúrgicos, com internação, sedação e raspagem do útero.” A ginecologista diz que em clínicas clandestinas o procedimento, muitas vezes, é feito com a introdução de um tubo de plástico, chamado cânula, no útero. “Dão um analgésico à mulher e o risco é de hemorragia. Muitas vezes, não houve a perda do feto, então há infecções e elas recorrem aos hospitais, e muitas não falam o motivo do sangramento”, conta Alamanda, lembrando que o risco de morte nesses casos é alto.
“Quando elas buscam socorro, temem ser punidas pela ilegalidade e se calam. Quando uma mulher morre, morre a família inteira”. lamenta o coordenador da Atenção da Saúde da Mulher da Secretaria Municipal de Saúde de BH, Virgílio Queiroz.
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