Corpos e mentes
Na capital em que crianças consomem crack e vivem ao abandono, o governador relança um debate oportunista
Quando expôs suas esculturas de corpos humanos em São Paulo, no ano passado, o artista inglês Antony Gormley comentou numa entrevista que lhe chamara a atenção a presença constante de pessoas estendidas pelas ruas do centro da cidade. Há anos que ando com relativa frequência pela região central de São Paulo e me deparo com esses corpos, em situações degradantes e muitas vezes insólitas.
Alguns cobrem-se por inteiro e não sabemos se a vida ainda pulsa sob os cobertores; outros deixam entrever a face entorpecida, desfigurada pelo consumo de álcool e drogas.
Há os que preferem o viaduto e os que escolhem os estreitos canteiros da avenida, entre automóveis e ônibus. E não é incomum vê-los no meio das calçadas. As pessoas passam, eu passo, não olhamos. Ou fingimos que não olhamos. Ou fingimos que olhamos e não nos importamos. Ou fingimos que nos importamos e olhamos.
Muitas dessas feias esculturas de carne e osso são de crianças. Meninos e meninas de 12, 13 anos. Ou quem sabe um pouco mais. Ou menos. Tanto faz. Consomem crack, perambulam por aquela selva durante a madrugada e a certa altura caem. Mais crescidos, acordados, podem me pegar ou te pegar no sinal, estilete em punho, passa aí, passa aí. Estou sempre olhando para os lados antes de parar, tentando saber de onde poderiam surgir. Estúpida violência, proteger-me da infância e da adolescência desprotegida. Não quero isso.
Já se passaram mais de dez anos desde a estreia de "Cidade de Deus", filme que causou algum ciúme e ressentimento, mas marcou a história do cinema brasileiro e virou referência internacional. Não apenas por suas qualidades intrínsecas, mas pela maneira como pegou o problema. É uma obra que toca em muitos aspectos de nossa vilania social, mas sobretudo nos deixa perplexos ao expor o processo brutal de fabricação da infância bandida nos morros dominados pelo narcotráfico.
De lá para cá, o Brasil mudou, não há dúvida, mas cada vez mais é preciso afastar a fumaça dos fogos de artifício da política e da ideologia para entender até que ponto realmente mudou e o que ainda está por ser feito para que possamos nos considerar um país decente e civilizado.
A semana passada foi dominada pela questão da redução da maioridade penal. Quem relançou o tema foi o governador Geraldo Alckmin, aproveitando a comoção causada por um crime brutal. Um cara de 17 anos matou, ao que parece a sangue frio, um estudante no bairro do Belém. Pessoalmente, eu, a sangue quente, pensando na vítima e em seus parentes e amigos, não me abalaria nem um pouco se o assassino fosse para a cadeia e lá passasse alguns dos piores anos de sua vida.
Não é disso, porém, que se trata.
Alckmin reagiu de maneira grosseiramente oportunista. Tentou lançar um véu de rigor sobre a questão que verdadeiramente o incomoda: o crime recrudesce em São Paulo. Considerando os bimestres janeiro/fevereiro dos últimos três anos, a ocorrência de latrocínios --o roubo seguido de morte-- triplicou. Os estupros aumentam, os homicídios e os roubos de veículos também. Isso não é bom às véperas do ano eleitoral.
Então vamos discutir a redução da idade da responsabilidade criminal? Ora, francamente. Há muito o que fazer em termos de melhoria do serviço público na área de segurança. E muito o que trabalhar para que se consiga criar um ambiente social mais coeso, equilibrado e menos propenso ao crime --que é humano e continuará a existir, mas não necessariamente como existe entre nós.
Educação, desculpe o clichê, tem que se tornar a prioridade nacional.
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