Revista Época -08/04/2013
ORGANIZADOR DE UM LIVRO SOBRE O MENSALÃO, O JURISTA DEFENDE QUE A
QUALIDADE DAS PROVAS E A ESTRATÉGIA DE JOAQUIM BARBOSA FORAM
DETERMINANTES NO JULGAMENTO
"A lealdade politica não se sobrepõe à livre convicção"
Luiz Maklouf Carvalho
Na maratona do julgamento da ação penal 470, mais conhecida por
mensalão, o ministro Carlos Ayres Britto, presidente do Supremo Tribunal
Federal, conseguiu um tempo para almoçar com o professor Joaquim
Falcão, da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de
Janeiro. Vegetarianíssimo, Britto pediu nada menos que uma moqueca. "Não
é pesada demais?", perguntou Falcão. "São só vegetais", respondeu o
ministro. Estar com Ayres Britto em pleno desenrolar da maratona
judicial mais importante na história do Supremo era uma ótima credencial
para o que o professor andava fazendo desde que o momentoso julgamento
se avizinhava. A convite dos jornais O Globo e Folha de S.Paulo, ele
coordenava um grupo de professores e pesquisadores do curso de Direito
da FGV/Rio.
A missão, inédita em coberturas do gênero, era
adicionar informação jurídica a ocorrências e incidentes frenéticos do
julgamento. No calor da hora, Falcão e sua equipe produziram dezenas de
artigos esclarecedores e/ou polêmicos sobre as questões em pauta, no
plenário e fora dele. Eles foram reunidos no livro Mensalão – Diário de
um julgamento, a ser lançado neste mês. São 445 páginas, divididas em 15
capítulos cronológicos. "É um exercício de análise do julgamento,
dentro de uma perspectiva mais pluralista", disse o professor – que,
talvez por influência do vegetarianismo de Britto, deu esta entrevista
tomando suco de tomate, enquanto mordia a cenoura que lhe servia de
colher.
ÉPOCA – Seu livro trata do Supremo, da mídia e da opinião pública. Que nota o senhor daria para cada um?
Joaquim Falcão – Supremo, 8. Opinião pública, 10. Mídia, 10.
ÉPOCA – Nem a própria mídia se daria 10. E, para a defesa, ela fez o papel de vilã.
Falcão
– O 10 é para esta junção inovadora da transparência e da análise. Ao
lado de todos os erros possíveis e de todas as paixões possíveis, vejo
um avanço qualitativo, que veio para ficar, e é uma tendência mundial,
que é uma mídia analítica, a favor da independência do leitor. Haverá
sempre setores que atacam a mídia, a doutrina, os advogados. Faz parte
da pluralidade que é necessária à democracia, e temos de nos acostumar a
ela.
ÉPOCA – O que o senhor achou da reação dos réus depois das sentenças?
Falcão
– Os réus têm se comportado absolutamente dentro do estado democrático
de direito. E as alegações de recorrer a Haia, à Organização dos Estados
Americanos, de sucesso improvável, são reações legítimas.
ÉPOCA – O senhor, pessoalmente, acha que houve ou não houve mensalão?
Falcão – O que você chama de mensalão?
ÉPOCA – A questão política: usar o dinheiro para comprar voto no Congresso.
Falcão
– Na compra de votos, você não tem pesquisas empíricas que afirmem
"dado o dinheiro tal, eu comprei o voto tal". Mas há situações em que
você interfere com recursos públicos para apoios permanentes que não são
revelados antes da eleição. Tem no livro um artigo meu que diz isso. O
eleitor precisa saber que o partido tal se aliou com o partido tal
porque este vai pagar suas contas. Aí deixa o eleitor decidir.
ÉPOCA
– As defesas dos réus, e os próprios, contestaram e continuam
contestando a condenação. O ex-ministro José Dirceu diariamente reafirma
que é inocente.
Falcão – As provas existem. De diversas
naturezas e hierarquias. O que você tem, para saber se existiu ou não
existiu, é a fundamentação dos ministros para seu livre convencimento. O
conjunto de argumentos é que convence os ministros do Supremo.
ÉPOCA – O senhor não acha que a grande figura do julgamento foi o ministro Ayres Britto, à época presidente da Corte?
Falcão
– Se se quiser fazer uma análise dos "champions", você tem o Britto, o
Barbosa, o Lewandovski e o Celso de Mello. O ministro Britto foi
decisivo e com estratégia pouco comum. Aumentar a taxa de cordialidade
entre os ministros era uma estratégia pensada.
ÉPOCA – Qual dos ministros mais lhe chamou a atenção?
Falcão
– O Joaquim Barbosa estava mais preparado que todos. Tinha uma
intimidade com as 55 mil páginas que os demais não tinham. Isso fez
diferença. Quem perceber o Joaquim Barbosa como emoção, não saberá lidar
com ele. Ele se preparou. Estava à vontade e usou isso na argumentação.
ÉPOCA – Onde o senhor acha que ele fez diferença?
Falcão
– Na estratégia decisória. Desse processo em diante ficará claro que
advogar é ser estrategista. Não foi a posição dele que pegou os outros
de surpresa, foi a estratégia. Inclusive pegou de surpresa a defesa, e o
revisor também.
ÉPOCA – O senhor se refere à posição de dividir o voto por núcleos, o motivo do primeiro quebra-pau com o ministro Lewandovski?
Falcão
– Sim. Foi uma estratégia decisiva em termos comunicativos. A
estratégia de Joaquim Barbosa manteve o país em suspense. Se a posição
do Lewandovski ganhasse, ele leria um voto de 600 páginas. Depois, o
Lewandovski leria um outro voto de 1.200 páginas. Existiria uma
desmobilização da mídia.
ÉPOCA – O ministro Joaquim Barbosa mudou
inclusive a ordem em que os réus eram apresentados. Nas denúncias do
Ministério Público, o primeiro era o ex-ministro José Dirceu. Se ele não
tivesse invertido, o julgamento poderia ter se esvaziado no primeiro
dia.
Falcão – A estratégia dele permitiu cumprir três objetivos.
Primeiro, mobilizar a opinião pública. Segundo, criar espaço para
conquistar o voto dos outros ministros. Terceiro, tirou partido de que
ele conhecia o processo melhor. Pouco a pouco, ele ia criando situações
de irreversibilidade, porque a estratégia tinha uma lógica interna.
ÉPOCA – Qual o papel do ministro Lewandovski, revisor do processo?
Falcão
– O Lewandovski assumiu uma posição, e isso é importante para o
Supremo. É preciso o contraditório, porque senão você não tem a
independência do Supremo. O Lewandovski assumiu esse ônus para ele. E
defendeu da melhor forma possível.
ÉPOCA – Melhor até do que o ministro Dias Toffoli, de quem se esperava um contraditório melhor, o senhor não acha?
Falcão – Isso é você que está dizendo.
ÉPOCA – O senhor não esperava outra postura do ministro Toffoli?
Falcão
– Esperava. Havia uma expectativa de que ele fosse fazer uma defesa
mais veemente, assim como havia uma expectativa de que o Fux votasse
dentro daquele princípio que não se confirma, em tribunal algum do
mundo, que é a lealdade política se sobrepondo à livre convicção.
ÉPOCA
– Depois do julgamento surgiram afirmações – como as do ministro
Gilberto Carvalho – de que o ministro Fux, quando em campanha,
comprometeu-se a votar com a defesa de alguns réus.
Falcão -
Defendemos o tempo todo que na sabatina de um indicado a ministro, no
Senado, ele tem de dizer com quem esteve na campanha para ser ministro. A
sabatina só tem sentido se for política e pública. O indicado tem de
dizer com quem esteve, com quem se reuniu, que é para você saber as
possibilidades e os riscos de aliança.
ÉPOCA – O ministro Celso de Mello também foi um "Champion", para usar sua expressão?
Falcão
– Sem dúvida. Ele criou uma figura que não tem dentro do processo, a do
decano. Era o último a falar. Podia definir a estratégia comunicativa
que ele queria. Dava ênfases e tomava posições como se o jogo conduzisse
a bola para ele.
ÉPOCA – O ministro Celso de Mello foi o que
mais decepcionou a expectativa dos advogados de defesa. Baseados na
jurisprudência de decisões anteriores – fartamente citadas nos memoriais
–, contavam com o voto dele em boa parte dos casos.
Falcão – A esperança dos advogados era que o voto do ministro Celso fosse previsível de acordo com seu passado.
ÉPOCA – E não foi.
Falcão
– Não foi. Porque a jurisprudência é um dos fatores que influenciam o
voto. A opinião pública é outro fator. A doutrina é outro fator. Jogar
na previsibilidade de repetição do passado é jogar no erro. O distinto,
nesse processo, foi a influência da opinião pública e da transparência
na decisão do Supremo. Essa é a grande discussão hoje, no mundo inteiro.
Você está vendo isso agora, nos Estados Unidos. Existe o mito de que a
Corte não se influencia pela opinião pública. Mas em nome de quem a
Suprema Corte resolveu apreciar o casamento gay? Em nome da opinião
pública.
ÉPOCA – Já que o senhor falou dos "champions", o que achou dos outros ministros, começando pelo ministro Marco Aurélio?
Falcão
– O ministro Marco Aurélio fala fora dos autos. Foi ao Jornal Nacional
criticar o Toffoli, por não ter se declarado suspeito. Quanto menos o
ministro falar, melhor. Mas o ministro Marco Aurélio é sempre um
contraponto inteligente, destinado a perder, como ele mesmo gosta de
dizer.
ÉPOCA – Ministra Cármen Lúcia.
Falcão – Foi sempre cautelosa.
ÉPOCA – Ministro Gilmar Mendes.
Falcão – Excessivamente discreto.
ÉPOCA – Ministro Cezar Peluso.
Falcão – Profissional.
ÉPOCA – Rosa Weber.
Falcão – Firme. E, antes de convencer, estava convencida.
ÉPOCA – Ministro Luiz Fux.
Falcão – Contrariou as expectativas da defesa.
ÉPOCA
– O que o senhor achou de o ministro Joaquim Barbosa ter negado o
pedido de aumento de prazo para os recursos, feito pela defesa,
considerando que o acórdão terá milhares de páginas. Não é um
cerceamento da defesa?
Falcão – Pessoalmente, concederia mais
prazo. Mas a decisão do ministro Joaquim Barbosa está dentro dos poderes
dele. Isso não implica cerceamento do direito de defesa.
ÉPOCA – O julgamento dos recursos pode mudar alguma coisa no mérito?
Falcão – Acho difícil.
ÉPOCA – Por quê?
Falcão
– Porque as provas estão aí, a decisão já foi tomada. Acho pouco
provável que a presidenta indicará alguém que terá uma conotação
política x, y ou z. Se ocorrer isso, se mudar o resultado dentro do
processo, é legítimo e é legal. Se você me perguntar a possibilidade
teórica de que isso existe, existe. Se você fala da probabilidade real,
neste momento eu acho baixa.
ÉPOCA – O que o senhor acha do
momentâneo silêncio sobre o chamado mensalão mineiro – que envolve
lideranças do PSDB e está no Supremo esperando julgamento?
Falcão – Acho que é questão de tempo, dependendo da mídia e da opinião pública, se eles querem ter nota 10 outra vez.
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