Maior desigualdade nos EUA não é um problema por si só
Representante da ala mais liberal americana questiona quem aponta profusão de 'áreas vip' como sinal de decadência social do país
Décadas atrás, não existia área VIP ou camarote na liga principal. O sujeito pagava uns poucos dólares e sentava onde quisesse, ricos e pobres lado a lado -no máximo, um pouquinho a mais para ficar junto ao campo. Com os anos, a diferença entre o ingresso mais barato e o mais caro se multiplicou, criando "divisão social" na arena.
Para o pessoal mais à esquerda das universidades "progressistas" americanas, isso é o sinal de que o capitalismo solto significou concentração de renda. O governo deveria interferir para dar condições mais igualitárias a todos -seja no estádio, seja no hospital ou na universidade.
Membro famoso dessa ala é Michael Sandel, 60, de Harvard. Ele usa o beisebol, sua paixão, como argumento sobre a decência social do país no seu recém-lançado "O Que o Dinheiro Não Compra: Os Limites Morais dos Mercados" (ed. Civilização Brasileira).
No outro lado, estão especialistas de "think tanks" liberais, como Randy Simmons, do Independent Institute. Ele veio ao Brasil a convite do Instituto Millenium para lançar "Para Além da Política: Mercados, Bem-Estar e o Fracasso da Burocracia" (Topbooks).
Aos 66, ele, como Sandel, adora beisebol e foi muito a estádios "igualitários" quando jovem. Acredita, porém, que seja positivo que setores melhores sejam mais caros. "Se o sujeito está disposto a pagar mais, significa que aquilo é muito importante para ele."
Se os dados mostram que a sociedade americana está cada vez mais desigual, isso não é necessariamente um problema, diz. Importa saber se os pobres vivem bem, não se existe gente muito mais rica do que eles. Abaixo, a entrevista.
Folha - O senhor e Sandel vão a jogos de beisebol há décadas. Ele sente saudade de quando ia ao estádio e pobres e ricos sentavam juntos. O senhor também? Acha que áreas VIP simbolizam uma mudança na sociedade americana?
Randy Simmons - Não. A liga principal é como um cartel: poucos times, um oligopólio. Com os anos, a demanda por ingressos, especialmente para os melhores lugares, cresceu muito, ao contrário da oferta. É natural o preço subir.
Eu não estou disposto a pagar o que os Yankees cobram pelos melhores lugares. Mas ainda posso ir ao estádio. E há outras ligas, outros jogos. Se você quiser muito o melhor lugar nos Yankees, economize o valor do ingresso. As pessoas estão dispostas a pagar, há demanda, e o número de cadeiras é limitado.
Mas é inegável que há uma crescente concentração de renda nos EUA.
Se a desigualdade é causada pelo governo, temos um problema. É o caso da Rússia.
No caso dos EUA, o fato de que Bill Gates é muito rico me faz feliz. É importante recompensar quem fez a vida de tantos mais fácil e aumentou tanto a produtividade geral.
Não se pode medir a desigualdade isoladamente, ela não é um problema por si. Quantas horas as pessoas pobres têm de trabalhar para conseguir um produto? Há cem anos, havia muito menos desigualdade, mas o acesso a bens ou serviços era menor. Vejo as coisas que meus netos têm hoje e comparo com o que meus pais podiam me dar. É muito mais, mesmo que a renda em valores corrigidos possa ter caído.
O senhor é contra o governo intervir contra a pobreza?
É fato: a sorte tem um papel grande na vida. Começa por nascer no lugar certo, na família certa. Mas é preciso permitir que as pessoas persigam o que querem. Assim, eu aceito que o governo tenha um papel na educação, mas sem administração direta.
Você pode ter vouchers [o governo dá um "vale educação" para os alunos]. É ótimo, mas a resistência dos sindicatos de professores é enorme. Sindicatos nunca trabalham pelo interesse público.
Mas, de maneira geral, creio que redes de proteção social só ficam maiores, maiores e maiores. Elas não ajudam as pessoas a inovar, a assumir responsabilidades.
Nós temos aquilo que subsidiamos. Se subsidiarmos os pobres, vamos ter pobres.
E nos programas de ajuda aos pobres, por exemplo, na África, muito se perde no caminho, de burocrata em burocrata. Se 40% de um programa chega a quem de fato precisa, ele é um sucesso! Especialmente porque os governos são muito corruptos.
Nesse sentido, me parece que vocês têm um experimento fascinante aqui no Brasil, o Bolsa Família, que eu gostaria de conhecer melhor.
Com transferência direta de dinheiro.
Sim. Veja: vi há pouco uma propaganda na minha universidade. Convidava as pessoas a doarem sapatos usados para a África. Mas tem alguém na África agora tentando sobreviver vendendo sapatos. A doação vai acabar com esse sujeito.
Se os americanos quiserem ajudar os africanos, poderiam acabar com o subsídio ao algodão nacional. Poderiam incentivar empréstimos a empreendedores, ajudar na criação rápida de empresas.
O senhor, imagino, discorda completamente de movimentos como o Occupy Wall Street.
Eles não sabem nada sobre um bom protesto. Sou filho dos anos 60. Fui ver o Occupy e fiquei decepcionado: onde estavam as mulheres dançando nuas, o pessoal "viajando"? Foi o protesto mais chato que eu já vi (risos).
Eles têm razão em algo: há excesso de poder político das corporações nos EUA.
Mas quem protesta tem de assumir responsabilidades. Um entrevistado reclamou que tinha se endividado para estudar teatro de fantoches. E agora estava lá protestando por falta de emprego, "não é justo"... Endividados escolheram se endividar.
O senhor era esquerdista quando jovem, protestou contra a guerra do Vietnã?
Não era. Fui contra a guerra porque não queria morrer.
Então o senhor tem algo em comum com Bush filho...
Sim, sim (risos). Para a minha geração, isso era o mais importante. Quando falaram tudo isso sobre Bush ter fugido da guerra, eu disse: todos nós fizemos isso. Eu tinha 18 anos. Fui a um curso da Aeronáutica de três anos, pensando "até eu me formar, a guerra acabou". Nem completei...
O senhor é republicano?
Não. A liberdade pessoal é um problema para muitos deles. Não deve importar ao governo quem casa com quem. Mas diga isso a republicanos mais conservadores. Eles ficam loucos. E há a maconha, a prostituição. Fale em legalizar a prostituição a certos republicanos e eles vão implorar para você voltar a falar de casamento gay (risos).
Mais do que isso, há uma onda de paternalismo nos EUA. Não é só Nova York querendo proibir que se beba muita Coca-Cola, é a escalada de impostos em tudo que soa errado: cigarros, álcool, coisas que engordam. É fácil: aumenta a arrecadação e soa justo. Se é assim, por que não legalizam logo a maconha?
Mas isso está mudando...
Sim. E é incrível: em Washington, que a legalizou, já há um órgão estatal para dizer como manejá-la. Isso as pessoas já sabem, não precisam de um burocrata! (risos)
O liberalismo econômico nunca fez sucesso na intelectualidade latino-americana. A narrativa da história econômica local costuma ser a de Eduardo Galeano, a das veias abertas. O que acontece?
Citam a influência católica. Não sei. A maioria dos cientistas políticos que estudam América Latina é de esquerda. Mas espero que um dia acordem para os dados. Veja a Argentina. Há 90 anos, era uma das economias mais fortes. Hoje, é a... Argentina (risos). A Venezuela então... Acho que os políticos daqui tiveram sucesso com certa narrativa da inveja. É a crença de que não se é responsável pelo que se é, de que a culpa é dos outros, da "dominação". Mas veja Hong Kong, veja os exemplos asiáticos. Conseguiram, por meio do livre comércio, a prosperidade.
Mas o senhor não considera que a crise de 2008 foi um golpe no liberalismo?
Não. Veja, foi o governo dos EUA quem incentivou suas agências de crédito imobiliário a tomarem riscos exagerados, dando a eleitores pobres casas que não podiam bancar.
Existiram, sim, inovações financeiras criadas por bancos que se revelaram muito arriscadas. Mas quase ninguém conseguiu prever isso. A grande maioria dos investidores não conseguiu, perdeu dinheiro. Se eles não conseguiram, um burocrata teria? E, depois de tudo, o governo ainda salvou os bancos. Isso só os encoraja a agir pior.
O pior é que a nova regulação foi muito influenciada por grandes instituições financeiras. Fizeram um sistema com muito menos competição, um oligopólio de "grandes demais para quebrar". A situação hoje é pior do que antes da crise.
FRASES
"Sou um filho dos anos 60. O Ocuppy Wall Street foi o protesto mais chato que eu já vi. E quem protesta tem de assumir suas responsabilidades. Os endividados escolheram se endividar"
"Os políticos da América Latina tiveram sucesso com certa narrativa da inveja. É a crença de que não se é responsável pelo que se é, de que a culpa é dos outros. Veja [o que se tornou] a Argentina"
RAIO-X RANDY SIMMONS
Ph.D. em ciência política pela Universidade de Oregon
ATUAÇÃO
Pesquisador sênior do Independent Institute e diretor do Instituto de Economia Política da Universidade do Estado de Utah. Foi prefeito da cidade de Providence (Utah)
Nenhum comentário:
Postar um comentário