Folha de São Paulo
A encrenca mora na expectativa de retorno; na religião, pelo menos se livrar do inferno é esperado
Há inúmeras ilustrações disso, aqui vão algumas. Quino, cartunista argentino da Mafalda, publicou nos anos 1970 quadrinhos retratando a chegada de um médico para atender uma criança doente. Os pais o veem como um anjo salvador quando ele põe a criança em bom estado. Na hora em que mostra a conta, já está visto como o "demo".
Em "Hamlet", Shakespeare fez Polonius dar conselhos a seu filho que partia em viagem. Entre eles estava: "Não empreste dinheiro a amigo. Quem o faz, perde o dinheiro e perde o amigo".
Conta a lenda que um monge budista caminhava por uma estrada quando foi esfaqueado pelas costas. Antes de morrer, conseguiu ver o rosto do assassino e comentar: "Curioso... Não me lembro de ter te feito nenhum bem na vida".
Ainda há o sapo e o escorpião atravessando o rio, o homem que salvou a cobra do congelamento e outras histórias.
O que há com a gratidão para provocar reações tão contrárias ao intuitivo? Logo na nossa espécie, que tem como seu melhor aspecto a capacidade de altruísmo recíproco, aquele fazer o bem com a esperança de algum retorno? (E não me venham dizer que o verdadeiro altruísmo não espera nenhum retorno, já que são Francisco de Assis, o ícone do altruísmo, rezava que "é dando que se recebe; é perdoando que se é perdoado").
A encrenca mora no retorno. Se você faz algo por alguém que não pode lhe retornar com facilidade ou se o favor é tão grandioso que é uma dívida impagável ("Eu te dei o maior presente de todos: a vida! E agora você quer sair com aquela sirigaita?"), a tendência, já que ninguém ama um credor, é que você seja odiado, deletado, esquecido, e agradeça aos céus se não for assassinado.
"O combinado não sai caro" e "boas contas fazem bons amigos" são princípios de troca muito claros e presentes na cultura americana. Que brasileiro responderá a um favor com "Fico te devendo uma", como eles fazem?
De modo que, se um amigo precisa de dinheiro e não pode devolver a você, dê de presente, não de empréstimo. E se você quiser fazer o bem, deixe claro que o feito traz sua recompensa em si (e traz!), sem dívidas. O que vier (quando e se) é lucro, não pagamento de dívida.
E a fé? Por definição, ela é a entrega amorosa a uma crença absurda, ilógica. Ressurgiu dos mortos no terceiro dia? Subiu aos céus? Nasceu de uma mulher que não conheceu varão? Grande doação é necessária para se acreditar nisso. Mais que isso, é preciso ter um dom, tão difícil que é.
Às vezes, sua motivação não é o amor, mas o medo. Você viu os enlutados pela morte do ditador coreano? Aquilo é amor?
Reparou como na fé existe expectativa de retorno? Nem sempre tão explícita como certos bispos a colocam: "Doe seu dízimo, quanto mais você doar, mais receberá de volta!" Mas, pelo menos, se livrar do inferno é esperado.
Crer na gratidão, creio, é uma espécie de fé.
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