O Globo - 26/05/2013
A mesa da cozinha é o local sagrado das conversas durante a madrugada,
quando os irmãos chegam da balada com fissura por um gole de Coca-Cola e
com histórias saindo pela boca: com quem ficaram ou não ficaram, o
trajeto que fizeram para driblar a blitz, o preço da cerveja, e aí as
amenidades evoluem para a filosofia, a necessidade de extrair da vida
uma essência, a tentativa de escapar da insignificância, até que o dia
começa a clarear e o cansaço avisa que é hora de ir para a cama.
Para alguns casais, a mesa da cozinha já serviu de cama, aliás.
A
mesa da cozinha ouviu confissões de amigas que juraram guardar segredo,
mas não conseguiram. O amante, a traição, a culpa, o nunca mais. A mesa
escuta e não espalha, reconhece a inocência das fraquezas alheias e se
sente honrada por ser confidente de tantas vidas.
A mesa da
cozinha escutou o que os convidados não comentaram na sala, viu
estranhos abrirem a geladeira atrás de algo mais substancial que
canapés, suportou o peso de quem resolveu sentar sobre ela para fumar um
cigarro antes de voltar para o burburinho da festa.
A mesa da cozinha já foi cenário de toda espécie de solidão.
Mas
também de encontros. Viu o casal de namorados preparar, sem receita,
seu primeiro salmão ao molho de maracujá, viu o menino nervoso abrir sua
primeira garrafa de vinho para uma menina não menos nervosa, viu um
beijo secreto entre primos cuja família comemorava o Natal em torno da
árvore, viu o marido se declarar comovidamente para a esposa viciada em
grifes, ao surpreendê-la com um simples avental amarrado em torno da
cintura.
A mesa da cozinha viu a mãe esquentar a primeira
mamadeira às três da manhã, com cara de sono e felicidade. E o pai da
criança, a caminho da área de serviço, segurando uma fralda suja com
expressão de nojo, mas também de orgulho.
A mesa da cozinha viu a
funcionária sentar num banquinho e, durante uma trégua entre um suflê e
um pavê exigido pela patroa, acariciar sua primeira carteira de
trabalho.
A mesa da cozinha viu o cachorro xeretar a lata de lixo e o gato lamber os restos que sobraram da louça do jantar.
A
mesa da cozinha viu a dona da casa tentar escrever um diário, coisas
que ela sente e que não tem com quem dividir, a não ser com a luz
amarelada do abajur do canto.
A mesa da cozinha absorveu lágrimas
que foram secadas com o pano de prato, tantas e tão sentidas. A mesa da
cozinha possui manchas que contam histórias. A mesa da cozinha tem um
pé frouxo que ninguém se lembra de aparafusar. A mesa da cozinha já
amparou carteados, velas acesas em dia de temporal, cinzeiros
abarrotados, a roupa passada e dobrada antes de ir para as gavetas.
A mesa da cozinha viu tudo.
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