domingo, 26 de maio de 2013

Os 40 anos de "Pérola Negra", de Luiz Melodia

folha de são paulo
MARCO AURÉLIO CANÔNICO
DO RIO

RESUMO Descoberto pelos tropicalistas quando ainda morava no morro, o carioca Luiz Melodia estreou em 1973, aos 22 anos, com um disco que ainda hoje impressiona pela força das composições e dos arranjos. A "Ilustríssima" narra os bastidores do sucesso, da musa da maioria das canções aos produtores e músicos do LP.
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Vinte e oito minutos. Esse foi o tempo que Luiz Melodia precisou para escrever seu nome na história da MPB, com as dez canções que compõem seu álbum de estreia, "Pérola Negra", lançado há 40 anos. Em menos de meia hora, vai do choro tradicional de "Estácio, Eu e Você", a primeira faixa, ao "Forró de Janeiro", a décima. Passa ainda pelo samba, rock, blues, soul, até foxtrote.
Tal variedade, somada à força das letras e da interpretação, causou grande impacto entre os artistas, críticos e intelectuais da zona sul carioca dos anos 70, reverberando a partir daí e garantindo ao disco, décadas depois, lugar cativo entre os melhores da MPB.
O que se ouve em "Pérola Negra" são as crônicas urbanas, o coração partido e a poesia incomum de um rapaz de 22 anos, negro, da zona norte do Rio --morro de São Carlos, no mesmo Estácio que, nos anos 1920, deu à luz o samba.
Divulgação
Luiz Melodia no festival Abertura, em 1975
Luiz Melodia no festival Abertura, em 1975
"Eu não tinha a fissura de ser artista. Gostava de tocar e de cantar, mas não pensava em ganhar a vida com música", diz Melodia, que recebeu a Folha em sua casa, em São Conrado, zona sul do Rio. "Tive a felicidade de estar na hora e no local certos quando uma mulher que virou minha amiga, a Rose, foi morar no morro. Ela conhecia muito os baianos, Caetano, Waly Salomão, Gal, todos eles."
Rose apresentou Melodia a Waly (1943-2003), que frequentava o morro para ouvir samba. O ano era 1971, e o rapaz do São Carlos já tinha um passado em bandas amadoras e em concursos de rádio, além de um punhado de composições que encantaram o poeta.
Agitador cultural nato, Waly Salomão introduziu Melodia à sua trupe tropicalista, incluindo o poeta e jornalista Torquato Neto (1944-72), que usou sua coluna "Geléia Geral", no jornal "Última Hora", para divulgar o "negro magrinho com composições interessantes, do morro do São Carlos".
"O Waly e o Torquato ouviram meu trabalho, outras pessoas da zona sul vieram saber, fiquei amigo de algumas, vira e volta descia o morro para tocar em reuniões na casa da Suzana de Moraes [filha de Vinicius] ou do [Jards] Macalé."
Nesses encontros começou a se destacar a canção"My Black, Meu Nego", que viraria "Pérola Negra" por sugestão de Waly, inspirado pelo apelido de um jovem gay da turma. O baiano, prestes a dirigir o show "Gal a Todo Vapor", instou Melodia a mostrar a pérola à dona do palco. "Fomos a ela num ensaio, peguei o violão e mostrei, e ela ficou apaixonada. Daí ficamos amigos, e ela falou: 'Vou pôr no meu disco'. Foi um acontecimento."
De fato, a reboque do sucesso de "Gal a Todo Vapor" --que lotava ininterruptamente o teatro Tereza Rachel, em Copacabana, e seria registrado em célebre disco ao vivo--, "Pérola Negra" estourou e jogou luz sobre seu compositor.
"A gente conheceu o Melodia em 1972, por causa da gravação da Gal. Foi o [arranjador] Perinho Albuquerque quem me disse que tinha um cara com umas músicas muito boas", conta o músico Roberto Menescal, àquela altura diretor artístico da principal gravadora da MPB, a Philips/Phonogram. "Saquei que já não era mais a bossa nova, a tropicália. Estavam chegando Raul Seixas, Sérgio Sampaio, Fagner. Fiquei de olho nessa turma. Quando o Perinho me falou, fui sacar as músicas do Melodia e o contratei."
Na época, o cantor passou a ser empresariado pelo poderoso Guilherme Araújo (1937-2007). "Eu tinha, de certa forma, costas bem quentes: ele tinha todo mundo, o Caetano, o Gil, a Gal. Me tornei o caçula, tinha todo um aparato em que confiei e que foi consistente."
Para um jovem desconhecido, vindo do morro, conviver com a turma do desbunde na Ipanema do amor livre e das "dunas do barato" foi um choque cultural. "Eu era um cara à parte da situação, era um menino. Lembro que, quando a Gal, aquela mulher linda e gostosíssima, sentava na minha frente de perna aberta, eu não entendia picas. E era uma coisa natural."
PAPA-ANJO
Em dezembro de 1972, quando entrou nos estúdios da Polygram, em Botafogo, para começar a trabalhar em seu disco de estreia, Melodia já tinha as dez composições próprias, criadas ao violão, que gravaria. Metade havia sido inspirada em uma mulher. "Foi um amor eloquente que eu tive, com 18, 19 anos. Era namorada do Waly Salomão, Deda --bem mais velha do que eu, tinha uns 28 anos, por aí. Ela era tipo 'papa-anjo'", diz o cantor, rindo.
"Ficamos amigos, tivemos uma relação muito rápida, depois ela parou com o Waly. Foi danado. Ela me inspirou bastante, talvez por ter sido a primeira mulher branca que eu namorei. Não sei se ela sabe que foi a musa do disco."
Deda era linda e fina. Ainda que os personagens não lembrem de que país vinha (Melodia diz que ela morava em Lima) nem de seu sobrenome. "Era argentina, se não me engano, tinha cabelo longo, loiro. O pai era cônsul, ela tinha um apartamento muito gostosinho na Lagoa, o Waly foi morar com ela", diz Jorge Salomão, irmão do poeta.
É fácil rastrear em "Pérola Negra" as canções nascidas do caso. E, à exceção da romântica "Magrelinha" --que Caetano Veloso regravaria em 2001--, as letras mostram que ele não acabou bem para o autor. "Quanto você ganha pra me enganar?/Quanto você paga pra me ver sofrer?", pergunta "Vale Quanto Pesa" (que ganhou versão do Barão Vermelho em 1996).
O drama chega ao ápice em "Farrapo Humano": "Eu choro tanto, escondo e não digo/Viro farrapo, tento suicídio/Com caco de telha, com caco de vidro". Veemente, a letra inicialmente foi vetada pela censura da ditadura militar, diz Melodia.
"Tinha um jeitinho que o Guilherme e a gravadora davam que não precisava mexer. Eles faziam as remandiolas deles lá e acabavam liberando." O "jeitinho" não funcionou com "Pra Aquietar", outra faixa cuja letra foi censurada.
O compositor não lembra o que incomodou os censores --a música fala de singelos passeios familiares à ilha de Paquetá, na baía de Guanabara--, mas diz ter reagido intempestivamente. "Com raiva, mudei a letra de imediato, botei qualquer coisa, só pelo som das palavras." Isso explica os versos "não posso pra lá, paraguaio para/menino de cá, faço o tempo parar".
"Pra Aquietar", que ganhou versão de Arnaldo Antunes, tem duas outras particularidades: é a faixa mais roqueira, com guitarra do então desconhecido Hyldon (que faria sucesso com "Na Rua, na Chuva, na Fazenda", de 1975), e é a única sem arranjos do baiano Péricles Albuquerque, o diretor musical do álbum.
VIOLÃO
"O Perinho fez um trabalho genial nos arranjos. Foi muito bacana como ele entendeu a coisa e passou para o papel, me ouvindo tocar as canções no violão", diz Melodia, que, curiosamente, não empunhou instrumentos na gravação. "Devido à autenticidade do meu violão, muita gente queria que eu tocasse no disco, mas não toquei. Achei que havia pessoas que fariam isso melhor do que eu."
O time convocado por Perinho para gravar "Pérola Negra" incluiu alguns dos melhores músicos de estúdio do país, como o baixista Rubão Sabino e o pianista Antonio Perna --o trabalho da dupla é particularmente notável na faixa-título e em "Magrelinha".
Houve ainda convidados pontuais, como Rildo Hora e sua gaita marcante em "Estácio, Holly Estácio" (que Bethânia já havia gravado, em seu disco "Drama", de 1972), os chorões do Regional do Canhoto em "Estácio, Eu e Você", com Altamiro Carrilho na flauta, e o guitarrista Renato Piau, que participou de "Farrapo Humano" e virou parceiro regular de Melodia.
O disco foi gravado no verão de 1973, em sessões diárias, das 9h às 15h. Ficou pronto em menos de dois meses, e sua mixagem original não agradou ao cantor. "Acho que a voz poderia estar num nível diferente, alguns instrumentos não se destacam tanto em algumas músicas", diz Melodia, que no dia desta entrevista ainda não havia ouvido a versão remasterizada do disco, lançada agora pela gravadora Universal em uma caixa com dois outros álbuns dele, "Felino" (1983) e "Pintando o Sete" (1991).
Sua capa, que ficou quase tão famosa quanto as canções, foi feita pelo fotógrafo Rubens Maia, velho parceiro de Melodia. Ela traz duas imagens: na base, cobrindo toda a área disponível, um monte de feijões pretos; em cima deles, no centro, uma foto do cantor dentro de uma banheira na vertical, segurando um globo terrestre.
O desgosto com a mixagem foi atenuado pela boa recepção crítica, que o levou a enxergar a obra com muita autoconfiança. "É um disco em que todas as músicas são geniais. Eu acho, e falavam para mim na época. Quando as pessoas ouviram, ficaram surpresas comigo, com minha idade, com a maneira como eu escrevia, com a intensidade." Não que a surpresa tenha se traduzido em estouro de vendas --a maior parte do dinheiro que Melodia recebeu então vinha da execução de "Pérola Negra" por Gal.
"Não foi um disco de boa venda, mas isso era normal", diz Roberto Menescal, que naquele 1973 emplacou vários novatos bons de crítica (Fagner, Sérgio Sampaio, Melodia), mas só um também de público: Raul Seixas. "O Fagner vendeu mil e poucos discos, o Melodia deve ter vendido por aí também, assim como o Sérgio Sampaio. Nenhum emplacou de cara, mas eu tinha certeza de que havia uma possibilidade boa de carreira ali. Não lembro por que não demos continuidade nele, algum problema deve ter havido."
Houve: Melodia diz que foi pressionado a gravar logo um segundo LP, e que não se sentia pronto em termos artísticos. Na contramão da variedade que eternizaria "Pérola Negra", sugeriram um álbum só com sambas, para poder vendê-lo com o rótulo de "sambista".
"O lance fonográfico era barra. Se pudessem, eles te usavam de maneira que você não mostrava sua arte. Queriam só números, e eu não estava viajando naquela onda." Mesmo iniciante, Melodia marcou posição --e pagou por isso.
"Quando viram que eu não ia gravar um novo disco, até porque eu não estava a fim, começou um choque com a gravadora, eu virei o cara difícil. Saí da Philips e já tinha as más línguas dizendo para não assinar contrato [com ele]. Começou uma coisa maluca de os caras não entenderem o que eu queria e começarem a me ver como difícil. Fiquei anos sem gravar."


Hoje um nome estabelecido na MPB, Melodia crê ter tomado a decisão correta. "Se eu abrisse mão e começasse a fazer um disco atrás do outro, não estaria no cenário musical como estou até hoje."

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