sexta-feira, 24 de maio de 2013

Alexander Sokurov e o tempo da vida - CAO GUIMARÃES



O Globo - 24/05/2013

Sokurov inverte os
papéis, colocando a
mãe diante da morte
e aos cuidados do
apaixonado filho


Numa fria manhã de inverno de
1997 em Londres, abro o jornal
“The Independent” e me deparo
com uma crônica singela assinada
por Nick Cave sobre um filme russo que
estava sendo exibido no lendário Everyman
Cinema, no bairro de Hampstead. Fã de
Nick Cave e de tudo o que vinha da Rússia
em matéria de literatura e cinema, cruzei a
cidade fria e cinzenta para a primeira sessão
da tarde. As frias extremidades de meu
corpo ao me sentar na poltrona do cinema
semivazio foram lentamente aquecidas por
um movimento sismográfico vindo diretamente
de meu coração durante a projeção
de “Mãe e filho” de Alexander Sokurov.

Um filme de uma singeleza, uma delicadeza,
uma complexa simplicidade e uma
qualidade de transcendência como poucos
que havia visto até então.

Ao nascer somos ejetados no mundo aos
cuidados de uma mãe, salvaguardados pelo
afeto incondicional de uma mãe. Sokurov
inverte o fenômeno e os papéis, colocando
a mãe diante da morte e
aos cuidados do dedicado
e apaixonado filho.

No filme somos lançados
em um riacho aparentemente
tranquilo,
onde as correntezas se digladiam
no fundo. A coreografia
e a delicadeza dos
gestos do filho para com a
mãe, os diálogos suspirados
nos ouvidos um do outro tiram do ordinário
o sublime, da realidade o onírico.

Este é um filme-bolha, transporta-nos para
a essência das coisas deixando uma fina
película separando-nos do mundo lá fora.
A essência das coisas do que está dentro, os
sentimentos, o sentimento nuclear entre
um filho e uma mãe.

Subtraídos do entorno, o filho carrega a
mãe no colo por estradas de terra sob um
céu de chumbo. O vento faz com que ele se
agache para proteger a mãe em seus braços.
Anda mais um pouco e põe a mãe de pé encostada
em uma árvore. Semiacordada, em
transe, a mãe abre os olhos para o que o filho
lhe oferece: a dança de uma plantação
ao vento — uma simples imagem, o movimento,
o cinema, a vida (em retribuição ao
que ela lhe deu).

A sensação é a de que estamos no tempo
da vida e não no tempo do cinema. O espaço,
ao contrário, nos parece irreal (divinamente
reinventado pelo fotógrafo Alexei
Fyodorov), a perspectiva enlouquecida,
uma pintura em movimento.

Ele volta para casa, alimenta a mãe com
uma mamadeira, deixando-a entretida
com uma mariposa pousada
em sua mão. Sai de novo
para caminhar, desta vez
sozinho. O mundo lhe envia
sinais, o trem que passa
ao longe, fumaça e apito.
Deita na relva, ouvem-se
passos, não há ninguém.
Um barco solitário corta o
oceano, troncos de árvores
acolhem seu choro.

Tudo está torto, disforme, carregado. Ao
mesmo tempo tudo está reto, límpido, lânguido,
leve. Ele volta para casa, sua mãe, já
em estado de mariposa, levantou seu último
voo.

Eu volto para casa, o céu de chumbo agora
está azul, minha alma está leve. Parece que morri.


Cao Guimarães é artista plástico e cineasta



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