ENTREVISTA - REGINALDO PRANDI
A ciência e os espíritos
Como a doutrina de Kardec ganhou o Brasil
VALDO CRUZ
RESUMO
Especialista nas religiões afro-brasileiras, Reginaldo Prandi volta ao objeto de estudo do início de sua carreira em livro recém-lançado sobre o espiritismo. Prandi conta a história de sua concepção por Alan Kardec e sua difusão no Brasil, onde encontrou terreno fértil na cultura sincrética do "transe" e da reencarnação.
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Uma das religiões mais populares do Brasil surgiu da curiosidade científica do francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, no século 19, quando a fé cega na Igreja Católica vinha sendo questionada pelo racionalismo. Em sua busca pela verdade a partir de fenômenos mediúnicos, Rivail (1804-69) lançou as bases do espiritismo -misto de filosofia, ciência e religião cujos princípios ele formulou nos cinco livros publicados por Alan Kardec.Mais do que um "nom de plume", esse foi o nome do intelectual francês numa de suas vidas passadas, conforme lhe revelaram espíritos que o auxiliaram na tarefa.
Poucas religiões têm relação tão forte com os livros e a leitura, mas ainda não havia no país uma introdução ao universo espírita escrita e voltada para leigos. Foi o que fez o sociólogo paulista Reginaldo Prandi em "Os Mortos e os Vivos" [Três Estrelas, 116 págs., R$ 25], no qual descreve a história e os princípios da doutrina fundada por Kardec e sua difusão no Brasil.
Para o autor, o espiritismo ganha força por aqui porque o Brasil é uma civilização com "contato com o transe", sobretudo nas religiões afro e indígenas. Prandi ressalta ainda que havia uma intelectualidade que queria se "libertar da dominação católica".
Hoje, de acordo com o Censo de 2010, 2% dos brasileiros, ou 4 milhões de pessoas, se declaram espíritas -crescimento de 35% em relação a 2000. Entre os que ganham mais de cinco salários mínimos, os espíritas são 20%.
O professor sênior da USP classifica o espiritismo de religião "discreta", avessa à "propaganda". Ateu, Prandi é um estudioso das religiões brasileiras, sobretudo as de origem africana. "Os Mortos e os Vivos", no entanto, marca o retorno a um tema que pesquisou no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), quando ainda se formava em ciências sociais, na virada dos anos 1970.
Nesta entrevista, concedida em sua casa, no bairro paulistano de Vila Mariana, às vésperas do feriado de Finados, ele comenta temas do livro e a morte recente de Flávio Pierucci, parceiro de pesquisas cujos escritos inéditos Prandi organiza para publicação.
Na segunda parte da conversa, mais pessoal, disponível em folha.com/ilustrissima, o sociólogo rememora sua formação e os debates em torno da criação do Datafolha, que ajudou a desenvolver.
"Meu Deus do céu, sou mais ateu do que pensava", disse Prandi, ao relembrar o infarto que sofreu em 2007, experiência que reforçou seu ateísmo. Ele também recordou seus primeiros contatos com o espiritismo, aos dez anos, quando assistia a sessões espíritas na casa do avô, em Potirendaba (SP), tendo presenciado cenas de "materialização".
"Era uma coisa bonita", contou. "De repente um corpo começava a se formar.
Começava a sair um filete de luz do ouvido, do nariz, às vezes da palma da mão."
Folha - Depois de anos se dedicando às religiões afro-brasileiras, por que se voltou agora ao espiritismo?
Reginaldo Prandi - Já fiz um monte de coisa, sobre candomblé, umbanda, catolicismo, literatura infantil sobre mitologia, mas nunca tinha escrito sobre a primeira religião que estudei, o espiritismo. Sempre houve referência, mas nada específico. Tive de fazer pesquisa para me atualizar. Mas tenho uma orientanda, Célia Ribas, que trabalha com espiritismo, o que me colocou em contato com a bibliografia mais recente. É uma religião muito pouco estudada.
O livro é uma espécie de reparação de uma dívida que eu tinha para com a minha formação, com o objeto de pesquisa que me abriu as portas da pesquisa em sociologia, no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), na virada dos anos 1960 para o 70. Mas nunca tinha escrito um livro sobre o tema. Só coisas pequenas, mas não um livro meu, para marcar no currículo. Por isso, topei o convite feito pelo Alcino [Leite Neto, editor da Três Estrelas] e fiz.
Quem ler o seu livro vai ter mais propensão a conhecer de perto o espiritismo ou a se afastar dele?
Não é um livro nem de defesa nem de acusação, é um livro objetivo. Essa é a prática de um sociólogo, naturalmente. Se o espírita lê, vai ter uma certa identificação com o livro. Mas quem não for espírita e o ler, também vai ter uma posição de concordar com o livro. Ele não assume nenhuma posição.
No primeiro capítulo, procuro mostrar rapidamente que a questão da religião é algo muito pessoal, dos seguidores, a respeito da alma, da reencarnação. Ser de determinada religião é escolher entre essas diferentes posições.
Fica claro, no primeiro capítulo, que o tratamento dos mortos é diferenciado, tem religião que deixa o morto descansar, tem religião que dá trabalhos para os mortos fazerem. No segundo capítulo, que é uma história preliminar ao surgimento de [Alan] Kardec, mostro o fenômeno das irmãs Fox [célebre caso de mediunidade nos EUA, em 1848]. Depois elas renegam o espiritismo, mas eu mostro que, antes de morrer, vão admitir aquilo.
Arthur Conan Doyle relatou o caso das irmãs Fox. Como foi a atuação do criador de Sherlock Holmes como divulgador do espiritualismo?
Todos os trechos citados são dele, é do livro dele. Isso foi feito de propósito. Pego o Conan Doyle porque a gente sabe que ele inventava histórias maravilhosas. Mas pego uma história verdadeira, importante, todo espírita sabe das irmãs Fox. Até hoje, quem não é espírita faz essas brincadeiras de comunicação com os espíritos, por copos, mesas. Com Conan Doyle, quero mostrar que, na verdade, isso era mais uma atividade cultural do que propriamente religiosa.
O espiritismo era uma moda, praticada pelas mais diversas pessoas, católicos, evangélicos, gente que não tinha religião. Aí veio o Kardec, numa terceira etapa. Além de acreditar na comunicação dos espíritos, que é a noção básica do espiritualismo, ele acredita na reencarnação. O espiritismo muda, a reencarnação passa a ser parte necessária da doutrina, coisa que não existe no espiritualismo anterior. Mas mantém a ideia que não é necessariamente uma religião, mas pode ser estudado por meio de práticas objetivas da ciência.
Trata-se de uma fé raciocinada?
Sim, porque tem muito do racionalismo da época. Nasceu de uma época em que a questão do dogma, da fé cega, isso tudo estava sendo questionado. Kardec apostou na ideia de que a verdade viria por meio da investigação, de que a ciência moderna -que ele não abandonava, era um pedagogo, um acadêmico- tinha um problema: havia deixado de lado alguns objetos com os quais não tinha instrumentos para trabalhar.
Um deles estava ligado ao espírito, à reencarnação. Ele dizia ser necessário reconstruir a ciência de tal modo que houvesse uma nova ciência, que incorporasse o espírito dentro dos estudos objetivos, o que inclui toda a parte material e a não material do mundo. Tanto é que ele vai dizer que não existe separação de matéria e espírito.
Muito antes de surgir a ideia contemporânea de Nova Era, "new age", de mundo holístico, já havia essa visão do Kardec de que o mundo material não se separa do espírito. O mundo dos vivos não se separa do mundo dos mortos. São etapas de um mesmo caminho. Na verdade, é apenas um processo de refinamento espiritual, que intermediava: você tem esta vida na terra, que na verdade é apenas um passo de uma longa caminhada.
Só que ele não queria ser visto como religião, dizia que isso tinha de ser visto, investigado, aprofundado. Agora, é claro que ele dizia que a religião tem seus dogmas. O primeiro é que há vários mundos. Isso não está em questão para ele. Há uma transmigração da alma por esses mundos todos. A partir daí ele trata de investigar.
Por que o espiritismo encontrou terreno tão fértil no Brasil?
A gente não sabe direito, não é possível saber ao certo, mas temos algumas ideias. Ele vem para o Brasil, civilização que já tem muito contato com o transe. O Brasil tem a religião majoritária, dominante, que é o catolicismo, europeu, branco, mas também tem uma grande contribuição na formação da cultura nacional das religiões africanas, das noções de transe, de incorporação, de reencarnação.
Quando o espiritismo se constitui, no Rio de Janeiro e na Bahia, você já tem ali todas as religiões afro-brasileiras funcionando a todo vapor e toda a tradição indígena, dos pajés, da pajelança, do xamanismo, a ideia de que os espíritos ajudam. De um lado você tem isso. De outro, tem uma intelectualidade que quer se libertar da dominação católica.
Deseja continuar religiosa, mas sem se prender a dogmas?
Não diria nem a dogmas, sobretudo à autoridade do padre, do bispo, da paróquia, porque ela não domina só o mundo da religião, mas também o político.
Vem daí a adoção do espiritismo pela classe média?
Sem dúvida, até hoje isso é absolutamente correto, os dados mostram isso. Embora o kardecismo tenha se transformado numa religião, ele não perde aquela ideia de que você tem de estudar, tem de pesquisar, ler. Ninguém lê mais que o espírita. Você não se transforma num espírita praticante indo só às sessões, você tem de ler, tem de ter toda uma formação letrada, que é praticamente parte do perfil do bom espírita, do praticante. Você tem de ser primeiro alfabetizado, ter acesso a esse bem que, no Brasil, é um bem de pouco acesso, que é o livro. Você tem de ter gosto pela leitura. São coisas de classe média. Pode ter também aquele que é só cliente, e não praticante, vai lá para curar algo.
A morte de Flávio Pierucci, neste ano, provocou em você algum sentimento religioso?
O Flávio sempre foi um parceiro importante, fizemos muitas coisas juntos, política universitária. Vou pegar o que ele escreveu, o que estava inédito, e começar a organizar para publicar.
Fiquei trabalhando o dia inteiro com o Ricardo Mariano, especialista em evangélicos que era o principal discípulo do Flávio em termos de teoria. Já estávamos pensando em organizar, pegar uma parte do material do Flávio e fazer um livro sobre um assunto a respeito do qual não havia nenhum livro publicado, mas artigos em revistas. Vamos organizar isso.
Quando meu grande professor, o Cândido Procópio, morreu, a preocupação também foi pegar a parte inédita do trabalho dele, organizar e publicar. Ou seja, um pouca dessa ideia de que a posteridade se firma na obra em vida. Jamais pensei no Flávio em termos de espírito, nem pensei no Procópio em termos de espírito, nem em outros colegas meus que faleceram.
Você enxerga a posteridade dele na obra que ele fez em vida?
Sim, tanto que na primeira semana da morte dele nós já conseguimos publicar um pequeno trecho dele na "Ilustríssima". Estou preparando um texto sobre ele.
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