domingo, 4 de novembro de 2012

Haddad e o Rei Leão


ARQUIVO ABERTO
O MAPA DA CULTURA

Haddad e o Rei Leão

São Paulo, 1998
Divulgação
A Lua e Scar, ou, na leitura do professor Haddad, a foice e o martelo
A Lua e Scar, ou, na leitura do professor Haddad, a foice e o martelo
RICARDO TEPERMAN
Na adolescência, meus cabelos crespos eram fonte de insatisfação. Eu driblava o problema como podia: bonés, bandanas, chapéus de variados estilos e procedências.
Em 1996, ao ingressar na faculdade, encontrei uma solução inspirada por meus pendores esquerdistas e francófilos: passei a usar uma boina preta, em inclinação de 45 graus. Virou um item indispensável. Podia sair sem meias ou até sem cueca, jamais sem a boininha.
O adereço estava em harmonia com o cenário da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde eu cursava ciências sociais. Na candura dos meus 19 anos, sentia-me um misto de Sartre com Che e alimentava planos de ser presidente do país. Afinal, o cargo já estava com um de nós.
Eu era terceiranista quando, em 1998, me matriculei na disciplina Seminários de Teoria Política Contemporânea, oferecida por Fernando Haddad. Já tinha sido aluno dele no ano anterior, quando começou a dar aulas na USP.
Logo vi que tinha entrado numa fria. O debate girava em torno do fim da URSS e dos discursos políticos que se tornavam hegemônicos. Estava na pauta a formulação de uma resposta à tese de Francis Fukuyama sobre o "fim da história". Líamos Robert Kurz e outros cujos nomes não lembro, marxistas ou não. Não era a minha praia.
Frequentando o curso semana sim, semana não, revi a sinceridade de meus interesses por política. A verdade é que minha boina era sobretudo um elemento de estilo.
Guardo uma só lembrança das aulas: Haddad nos recomendando um filme. Não "O Encouraçado Potemkin" nem "Deus e o Diabo na Terra do Sol", mas "O Rei Leão".
Quem não recorda a épica cena inicial? O dia rompendo nas savanas da África e os animais desfilando em harmonia pré-diluviana ao local onde o rei Mufasa apresentará o herdeiro do trono, o fofíssimo Simba. Tudo ao som da emocionante trilha, com os devidos ajustes étnicos, de Elton John.
Eu tinha visto a animação na estreia, em 1994 -aliás, ano em que o "príncipe da sociologia" foi eleito presidente do país-numa sala do shopping Iguatemi, em companhia de dinamarqueses com quem participava de um programa de intercâmbio. Não parecia algo que interessasse aos leitores de Kurz.
Ainda sem entender como Walt Disney e Elton John poderiam dividir a sala de aula com Trotsky e Rosa Luxemburgo, fiquei eletrizado com a proposta, que li em chave tropicalista. O professor explicou que assistira "O Rei Leão" com seus filhos, então crianças. Ao longo da sessão, tivera um "insight": havia um discurso ideológico consistente e articulado costurando a narrativa do blockbuster. Uma reatualização da Guerra Fria.
O reino de Mufasa representaria o capitalismo, colorido, abundante e multicultural. O lema da canção "Hakuna Matata", interpretada por Timão e Pumba, era uma variação do "Don't Worry Be Happy" -uma ode à futilidade da sociedade de consumo. Do outro lado, depois do Cemitério dos Elefantes (onde Mufasa proibia o filho de ir), encontrava-se a cinzenta terra das hienas -o Bloco Oriental.
Slavoj Zizek tem citado "The Circle of Life", canção-tema do filme, como algo que naturaliza a dominação capitalista: é normal, leões comem os outros animais.
Mas Haddad ouviu o galo cantar primeiro. Para ele, a cena mais emblemática era aquela em que o vilão Scar mobiliza o exército de hienas para anunciar seu plano: matar o rei Mufasa e seu filho Simba. Outro número musical: "Injustiças, farei com que parem: se preparem! Fiquem comigo, e jamais sentirão fome outra vez!"
Scar está no topo de uma pedra e, enquanto a horda de hienas desfila em fileiras fascistas, a "câmera" faz um travelling. O leão é visto em contraluz, tendo por trás uma lua crescente. Haddad não podia se conter: "Vejam com seus próprios olhos, não estou delirando: são a foice e o martelo da bandeira soviética".

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