terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Apologia da flexibilidade - João Pereira Coutinho


Apologia da flexibilidade
"Sanidade" pressupõe equilíbrio entre a rigidez dos nossos princípios e o caos da vida como ela é
É SEM dúvidas uma lamentável tragédia: Jacintha Saldanha era enfermeira em um hospital de Londres. Recebeu uma ligação de dois radialistas australianos que se fizeram passar pela rainha Elizabeth 2ª e seu filho, o príncipe Charles.
A intenção dos radialistas era obter informações sobre a gravidez de Kate Middleton. Jacintha acreditou na pegadinha, passou a ligação a uma colega do hospital. Que revelou o estado de saúde da duquesa com pormenores.
Ninguém sabe o que se passou nas horas seguintes. Exceto que Jacintha Saldanha lidou mal com a brincadeira e apareceu morta. A polícia suspeita de suicídio.
Existem duas formas de olhar para o caso. A primeira é seguir o coro dos indignados, denunciar a cultura pop pela sua vulgaridade mendaz e até pedir a cabeça dos dois radialistas.
Mas existe uma segunda forma de olhar para o mesmo caso. De preferência, lendo um pequeno grande livro que até a circunspecta revista "The Economist" elegeu como um dos melhores do ano.
Foi escrito pela psicanalista Philippa Perry e o título diz tudo: "How to Stay Sane" (como se manter são, Macmillan, 160 págs.).
Primeiras conclusões: a "sanidade" não pode ser confundida com noções pedestres de "felicidade individual", vendidas por analfabetos infelizes em manuais de autoajuda.
Muito menos se confunde com variações mais modestas de "normalidade": a pretensão de definir o que é a "normalidade" não passa de um sintoma de anormalidade.
Para Philippa Perry, que escreve o ensaio com um pé na neurologia, outro na psicanálise, sem esquecer os ensinamentos imperecíveis dos Clássicos, "sanidade" pressupõe equilíbrio entre a rigidez dos nossos princípios e o caos da vida como ela é.
Ou, em linguagem platônica, "sanidade" é saber usar a razão para que nenhum dos dois cavalos que puxam a quadriga da alma -o cavalo do Espírito e o cavalo do Apetite- possam tomar, por si só, as rédeas da marcha.
Claro que os genes e a constituição orgânica do indivíduo têm uma importância decisiva nesse grau de sanidade.
A esse respeito, relembro um texto lido há uns anos, num tratado sobre a história da loucura, e escrito por um médico do hospício inglês de Bedlam em 1816 que nunca mais esqueci. Cito de cor: os pensamentos desarranjados, escrevia o doutor William Lawrence, têm a mesma relação para o cérebro que os vômitos para o estômago, a asma para os pulmões e qualquer outra maleita para o seu órgão correspondente.
Quando li essa passagem, sublinhei-a com um ponto de exclamação. Ou talvez com um ponto de lamentação: quantas vidas não teriam sido poupadas à culpabilização, à vergonha e ao sofrimento se as neurociências, pateticamente entretidas a aplicar "mitos gregos às partes íntimas" (obrigado, Nabokov), tivessem olhado mais cedo para o seu órgão correspondente?
Divago. Ou talvez não: porque se os genes têm importância para certas maleitas, não terão para todas.
E, por vezes, somos nós, seres racionais, que devemos procurar a palavra mais importante na gramática da sanidade. "Flexibilidade", escreve Philippa Perry.
Que o mesmo é dizer: olhar para os nossos princípios com uma boa dose de ceticismo e ironia. Não nos levarmos demasiado a sério. E, sobretudo, não levar a vida -frágil, fugaz e nem sempre rósea- demasiado a sério.
Na triste história de Jacintha Saldanha, é fácil criminalizar os dois radialistas. É fácil criminalizar uma brincadeira. É fácil acreditar que, sem uma pegadinha daquelas, a vida de Jacintha continuaria harmoniosa e feliz.
Duvido. Muito. E a única coisa que lamento é não ter existido ninguém -um colega de hospital, um amigo, um familiar, até um doente - que não tenha conferido a uma mera brincadeira a sua real dimensão.
E que, mesmo respeitando os princípios de verdade e honradez que faziam parte do código da enfermeira, não a tenha levado a rir de uma simples pegadinha. Porque nenhuma pegadinha daquelas justifica um suicídio.
No fundo, talvez seja essa a única moral da história: quando não temos a flexibilidade necessária para nos rirmos da vida, é a morte que acaba por se rir de nós.

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