Folha de São Paulo
A questão é saber se Maduro conseguirá tocar um chavismo sem Chávez
POUCO MAIS da metade dos venezuelanos acordou no domingo com uma sensação de orfandade, depois que Hugo Chávez admitiu pela primeira vez que não é imortal.
A orfandade não é figura de linguagem. Desde sua fracassada tentativa golpista, faz 20 anos, Hugo Chávez Frías trabalhou com afinco a messiânica ideia de que ele e a pátria são, no fundo, uma e a mesma coisa.
Chegou a dizer: "Já sei que nunca me irei porque ficarei para sempre nas ruas e nos povoados da Venezuela, porque Chávez já não sou eu, Chávez é a pátria". Exatos 55% dos venezuelanos compraram esse messianismo, nas eleições de outubro, e lhe deram um quarto mandato.
Essa identificação é ressaltada por dois analistas de posições opostas: Stephen Johnson, do conservador Centro para Estudos Internacionais e Estratégicos dos Estados Unidos, aponta uma coleção de problemas na Venezuela de Chávez para terminar reconhecendo que:
"Apesar de frequentes apagões, do racionamento de comida, do desaparecimento de muitos empregos no setor privado e da inflação, muitos venezuelanos acham que estão melhor hoje do que há uma década e meia" [quando começou o reinado Chávez].
Do lado dito progressista, reforça Alberto Barrera Tyszka, coautor de uma biografia do presidente: "Ele deu voz ao povo que era excluído da sociedade".
Nessas circunstâncias, fica claro que a hipótese de que Chávez não consiga assumir seu novo mandato (a partir do dia 10) ou não possa cumpri-lo é um acontecimento absolutamente excepcional.
A pergunta para a qual ainda não há resposta é óbvia: será possível um chavismo sem Chávez?
Não conheço nenhum "ismo" que tenha sobrevivido ao desaparecimento de seu criador. Há quem diga que o peronismo sobreviveu a Perón. Não acho. São tantos os peronismos pós-Perón que a rigor não há nenhum.
Será Nicolás Maduro, o chanceler e vice-presidente que Chávez abençoou como herdeiro, capaz de romper a regra? Pode ser, mas a ênfase que Chávez pôs na palavra "unidade", no discurso de sábado, indica que não será nada fácil.
A consultora Carmen Beatriz Fernández avisa que Maduro pode até obter o apoio de caciques chavistas, "mas não conhecemos a possível reação dos invisíveis dentro do PSUV [Partido Socialista Unificado da Venezuela], que, ante uma mudança, verão ameaçados sua força, seu poder e seus negócios" (sugiro grifar negócios, leitor).
No coração do chavismo, o cientista político e blogueiro Nicmer Evans ousa propor que a designação de Maduro seja submetida a um processo de legitimação, de acordo com os estatutos do PSUV.
"Permitiria ter a garantia não só do respeito às normas, por qualquer de seus procedimentos, como permitiria demonstrar a unidade e a fortaleza ante a adversidade."
É uma maneira delicada de dizer que o país não é um reinado em que o rei aponta o sucessor e os súditos apenas dizem amém, por mais que Chávez se ache a própria Venezuela.
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