Carlos Marcelo
Estado de Minas: 19/01/2013
“Estar dentro das imagens, vendo-as ou inventando as minhas, é uma coisa que não tem preço, e no que os anos passam, e você acumula experiência de vida, logo vê que as imagens e os sons são indissociáveis da vida em si. Talvez por serem mesmo prova de existir, vendo ou filmando.” Em julho de 2010, ao escrever sobre o início das filmagens de O som ao redor, o crítico e cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho já dava pistas de que – após bem-sucedida carreira em curtas argutos como Eletrodoméstica (2005) e Recife frio (2009) – o seu primeiro longa-metragem ficcional seria resultante do que viveu e observou dentro e fora de casa, dentro e fora dos cinemas. Por isso, o que chama atenção, logo nos primeiros minutos de projeção, é a sensação de incômoda familiaridade.
Se você nasceu e viveu em uma grande cidade brasileira – Belo Horizonte, Rio, São Paulo, Salvador, Porto Alegre – nas três últimas décadas, você conhece os personagens que vivem na rua recifense onde se passa O som ao redor. Em algum momento da vida, você passou por alguma, ou muitas, daquelas situações mostradas ao longo dos 131 minutos; receios, infundados ou não, acumulados da infância até a vida adulta, quase todos ligados a fatos. O que você não sabia é que reencontraria essas situações, juntas e misturadas, em uma sala de cinema. Eis a primeira grande virtude de O som ao redor: trazer o que ficou para trás, ou que ainda está ao nosso lado e já deixamos de enxergar, para bem diante dos nossos olhos.
De maneira simples e prodigiosa, o cineasta expõe estes temores ao lançar mão de um recurso antigo, muito mais antigo do que o próprio cinema: o som. O fato de a palavra aparecer no título do filme já evidencia quem é o verdadeiro protagonista desse “suspense sem enredo”, como definiu o crítico A.O. Scott, do New York Times. Um tanto escanteado em tempos do fascínio provocado pela oferta de imagens em todas as telas, o som conduz – e também desorienta – personagens e espectadores. Com poucas palavras e muitos ruídos, o diretor lembra que o brilho do raio sempre nos assustou menos do que o estrondo do trovão – e não por acaso, uma das cenas mais perturbadoras é a representação de um pesadelo de uma menina de classe média: ao contrário das crianças de outrora, as de hoje têm mais medo de ladrão do que de assombração.
Em “Viela Brasil”, ensaio publicado em seu blog, o escritor goiano André de Leones ressalta a forma pela qual o cineasta pernambucano atinge o objetivo primordial: “Não há discursos, não há situações-laboratório, não há conversa fiada, não há ideologismos, não há neorrealismo, não há cinemanovices. Há uma população muito bem escolhida de personagens, ricos e pobres, no topo, na base e no centro da cadeia alimentar brasileira, que se movimenta em círculos por essa viela na qual o filme se situa e, a bem dizer, situa cada espectador que se disponha a vê-lo”, afirma Leones, antes de resumir, com extrema felicidade: “Olhamos para o filme, mas é, sobretudo, o filme que olha para nós”.
Só que Kleber Mendonça Filho não se contenta em nos olhar – e, eventualmente, nos assustar – enquanto assistimos ao filme, como fez com maestria o cineasta austríaco Michael Haneke (o mesmo do recém-lançado Amour) em obras como Funny games – Violência gratuita (1997) e Caché (2005). Enquanto nos submerge na atmosfera de thriller, Kleber apresenta o segundo grande trunfo de seu roteiro: olhar o passado para encontrar as raízes da desigualdade social, capazes de provocar incessantes fagulhas nas relações domésticas entre patrões e empregados.
Com sutileza e mesmo humor, retoma um dos temas favoritos do conterrâneo Gilberto Freyre e mostra que a segregação social praticada nos casarios dos engenhos continua em voga nos centros urbanos, em especial na hora em que os valores podem ser ameaçados – e não por acaso, um dos personagens abastados faz questão de avisar para outro, mais pobre, que acaba de chegar à rua de classe média onde montou um esquema de segurança particular: “Aqui não é favela, não!”.
Não, não estamos nas favelas de Tropa de elite e Cidade de Deus. Estamos em território muito mais familiar. Por um caminho diferente de José Padilha e Fernando Meirelles, Kleber Mendonça Filho fez um filme igualmente relevante sobre nossa patologia social, traduzida aqui na paranoia de segurança e a subjugação por meio da perpetuação do exercício do poder, em casa e na rua. É o ponto alto da cinematografia produzida nas duas últimas décadas em Pernambuco, como destacou o crítico José Geraldo Couto em texto para o blog do Instituto Moreira Salles, ao lembrar de filmes como Baixio das bestas, Baile perfumado e Deserto feliz: “O que move todos eles, no fundo, é a tensão, ou antes a fricção, entre a presença no mundo urbano globalizado e os resquícios de uma cultura profundamente violenta e patriarcal. Os signos do contemporâneo e a persistência do arcaico, tudo ao mesmo tempo agora. Não foi à toa que se fez um paralelo entre o árido movie e o mangue beat, que realiza uma operação análoga na música popular. O som ao redor articula essa equação de modo mais sutil e menos estridente que a maior parte da filmografia pernambucana. É como se o terreno já tivesse sido desbastado – e ao mesmo tempo semeado – para o advento deste filme esplêndido”, afirma Geraldo Couto.
E ele tem toda a razão: ainda que haja assimetria no desempenho dos atores e duas ou três cenas (como uma briga familiar por causa da chegada de uma tevê) pareçam deslocadas, a teia engendrada por Kleber Mendonça Filho, da primeira à estupenda sequência final, é assombrosa. Com astúcia e imaginação, O som ao redor se apropria da tensão iminente que paira sobre o cotidiano para apresentar a conta resultante da soma de todos os nossos medos.
O Som ao Redor
Longa-metragem do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho. Com Irandhir Santos, W.J.Solha, Gustavo Jahn e outros. Em cartaz nos cines 104 e Belas Artes. Consulte horários no roteiro do caderno EM Cultura.
30 mil
Número de espectadores que assistiram a O som ao redor em 10 dias de exibição no circuito comercial brasileiro
Se você nasceu e viveu em uma grande cidade brasileira – Belo Horizonte, Rio, São Paulo, Salvador, Porto Alegre – nas três últimas décadas, você conhece os personagens que vivem na rua recifense onde se passa O som ao redor. Em algum momento da vida, você passou por alguma, ou muitas, daquelas situações mostradas ao longo dos 131 minutos; receios, infundados ou não, acumulados da infância até a vida adulta, quase todos ligados a fatos. O que você não sabia é que reencontraria essas situações, juntas e misturadas, em uma sala de cinema. Eis a primeira grande virtude de O som ao redor: trazer o que ficou para trás, ou que ainda está ao nosso lado e já deixamos de enxergar, para bem diante dos nossos olhos.
De maneira simples e prodigiosa, o cineasta expõe estes temores ao lançar mão de um recurso antigo, muito mais antigo do que o próprio cinema: o som. O fato de a palavra aparecer no título do filme já evidencia quem é o verdadeiro protagonista desse “suspense sem enredo”, como definiu o crítico A.O. Scott, do New York Times. Um tanto escanteado em tempos do fascínio provocado pela oferta de imagens em todas as telas, o som conduz – e também desorienta – personagens e espectadores. Com poucas palavras e muitos ruídos, o diretor lembra que o brilho do raio sempre nos assustou menos do que o estrondo do trovão – e não por acaso, uma das cenas mais perturbadoras é a representação de um pesadelo de uma menina de classe média: ao contrário das crianças de outrora, as de hoje têm mais medo de ladrão do que de assombração.
Em “Viela Brasil”, ensaio publicado em seu blog, o escritor goiano André de Leones ressalta a forma pela qual o cineasta pernambucano atinge o objetivo primordial: “Não há discursos, não há situações-laboratório, não há conversa fiada, não há ideologismos, não há neorrealismo, não há cinemanovices. Há uma população muito bem escolhida de personagens, ricos e pobres, no topo, na base e no centro da cadeia alimentar brasileira, que se movimenta em círculos por essa viela na qual o filme se situa e, a bem dizer, situa cada espectador que se disponha a vê-lo”, afirma Leones, antes de resumir, com extrema felicidade: “Olhamos para o filme, mas é, sobretudo, o filme que olha para nós”.
Só que Kleber Mendonça Filho não se contenta em nos olhar – e, eventualmente, nos assustar – enquanto assistimos ao filme, como fez com maestria o cineasta austríaco Michael Haneke (o mesmo do recém-lançado Amour) em obras como Funny games – Violência gratuita (1997) e Caché (2005). Enquanto nos submerge na atmosfera de thriller, Kleber apresenta o segundo grande trunfo de seu roteiro: olhar o passado para encontrar as raízes da desigualdade social, capazes de provocar incessantes fagulhas nas relações domésticas entre patrões e empregados.
Com sutileza e mesmo humor, retoma um dos temas favoritos do conterrâneo Gilberto Freyre e mostra que a segregação social praticada nos casarios dos engenhos continua em voga nos centros urbanos, em especial na hora em que os valores podem ser ameaçados – e não por acaso, um dos personagens abastados faz questão de avisar para outro, mais pobre, que acaba de chegar à rua de classe média onde montou um esquema de segurança particular: “Aqui não é favela, não!”.
Não, não estamos nas favelas de Tropa de elite e Cidade de Deus. Estamos em território muito mais familiar. Por um caminho diferente de José Padilha e Fernando Meirelles, Kleber Mendonça Filho fez um filme igualmente relevante sobre nossa patologia social, traduzida aqui na paranoia de segurança e a subjugação por meio da perpetuação do exercício do poder, em casa e na rua. É o ponto alto da cinematografia produzida nas duas últimas décadas em Pernambuco, como destacou o crítico José Geraldo Couto em texto para o blog do Instituto Moreira Salles, ao lembrar de filmes como Baixio das bestas, Baile perfumado e Deserto feliz: “O que move todos eles, no fundo, é a tensão, ou antes a fricção, entre a presença no mundo urbano globalizado e os resquícios de uma cultura profundamente violenta e patriarcal. Os signos do contemporâneo e a persistência do arcaico, tudo ao mesmo tempo agora. Não foi à toa que se fez um paralelo entre o árido movie e o mangue beat, que realiza uma operação análoga na música popular. O som ao redor articula essa equação de modo mais sutil e menos estridente que a maior parte da filmografia pernambucana. É como se o terreno já tivesse sido desbastado – e ao mesmo tempo semeado – para o advento deste filme esplêndido”, afirma Geraldo Couto.
E ele tem toda a razão: ainda que haja assimetria no desempenho dos atores e duas ou três cenas (como uma briga familiar por causa da chegada de uma tevê) pareçam deslocadas, a teia engendrada por Kleber Mendonça Filho, da primeira à estupenda sequência final, é assombrosa. Com astúcia e imaginação, O som ao redor se apropria da tensão iminente que paira sobre o cotidiano para apresentar a conta resultante da soma de todos os nossos medos.
O Som ao Redor
Longa-metragem do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho. Com Irandhir Santos, W.J.Solha, Gustavo Jahn e outros. Em cartaz nos cines 104 e Belas Artes. Consulte horários no roteiro do caderno EM Cultura.
30 mil
Número de espectadores que assistiram a O som ao redor em 10 dias de exibição no circuito comercial brasileiro
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