Estado de Minas: 19/01/2013
As greves vão voltar. O que é muito bom para a economia, para a política e para a sociedade. Os momentos de confronto entre capital e trabalho foram, historicamente, determinantes da evolução das relações laborais. Sem greves, não teríamos jornada de trabalho regulamentar, férias, salário mínimo e outros direitos trabalhistas. Foi por meio do conflito que se plasmaram os avanços, até criar um solo inegociável de regras, que pode ser traduzido como dignidade.
No entanto, de uns tempos para cá, a falsa noção de modernidade vem tentando solapar as bases sobre as quais se fundam as relações trabalhistas, em nome da competitividade que tem como objetivo apenas os resultados econômicos. Assim, vai ganhando corpo a ideia da desregulamentação extrema, que transforme o direito trabalhista em um conjunto de acordos, quase sempre feitos em torno de situações extremas, em que a parte mais fraca é sempre o trabalhador.
O curioso é que, muitas vezes, partem de alguns sindicatos, ou de entidades que se dizem sindicatos, propostas de desmontagem da estrutura de proteção social criada ao longo dos séculos pela luta dos trabalhadores. A atual situação econômica do país não deixa dúvida: precisamos de mais direitos, não de menos garantias. A todo momento, continuam a ser denunciados de trabalho escravo a formas perversas de assédio moral que visam tornar o trabalhador o elo mais fraco dessa cadeia.
A situação do mundo do trabalho vive um momento especial no Brasil. A recente incorporação de milhões de pessoas ao mercado formal, à primeira vista, parecia ter fortalecido a classe trabalhadora como um todo. Afinal, mais pessoas trabalhando na formalidade levariam à alteração do jogo de forças entre capital e trabalho. No entanto, a chamada nova classe C, de acordo com padrões aferidos pelo consumo, vinha do terreno da desmobilização absoluta, aquém do proletariado, numa situação que foi chamada por alguns sociólogos de precariado e, por outros, de ralé.
Em outras palavras, a nova classe trabalhadora não evoluiu de um campo de labor que carregasse a história de organização e representação política. Não conhecia sindicatos e, mesmo com expressa vontade de transformação, se coloca sempre dentro da ordem, de onde espera que as transformações venham de forma natural. A vida sindical ensina: não se abrem caminhos sem derrubar barreiras. Talvez a grande confusão venha da forma de usar os conceitos, principalmente a noção de classe.
Há um certo prazer – e má-fé – em nomear os novos trabalhadores como classe média. A noção de classe se liga ao lugar na cadeia de produção e não à ponta do sistema, no momento do consumo. Ao definir a classe C pelo número de bens que as pessoas adquirem no mercado, o que se pretende é despolitizar a relação de trabalho em favor de uma inexistente paz social feita de consumidores felizes. Não há consumo feliz, ele é sempre feito de frustrações e alienação.
Por isso, o que a evolução social dos novos trabalhadores parece indicar é a recuperação da capacidade de organização política, seja em torno de objetivos imediatos que compõem a pauta de alguns movimentos sociais, seja a partir de novos projetos relacionados ao conflito estrutural com o capital (diminuição de jornada e aumentos reais de salário), ou mesmo de fortalecimento dos partidos políticos de base operária de todos os extratos – não apenas os trabalhadores do setor de ponta da economia.
A situação brasileira tem algumas singularidades promissoras. Pode-se observar, a partir do mundo do trabalho, que a politização tende a substituir certo conservadorismo que por muito tempo alimentou a classe média tradicional. Posto no espectro político como abrigo prioritário da ordem, esse segmento da sociedade nunca gostou de mudanças, acha que ordem é progresso e que o moralismo é a mais avançada das atitudes políticas. Carrega a UDN na alma, o rancor no discurso e o preconceito no coração.
A “nova classe média” pode até ter começado com a mesma inspiração antimudancista, feliz em participar da festa do consumo, mas começa a perceber que lhe cabe alterar as situações sociais que por tanto tempo a deixaram na expectativa de transformações ditadas de cima para baixo. Há, também, uma alteração da chamada opinião pública, que deixa de emanar dos meios de comunicação e ecoar na sociedade reacionária por meio dos partidos da ordem e dos sindicatos alinhados, para se tornar mais plural e complexa. A dissonância entre o noticiário e os resultados eleitorais, por exemplo, é sinal desse novo cenário, habitado por novos sujeitos.
Fogo amigo O que se passa no Brasil é, de certa maneira, um símbolo do desconforto que varre o mundo. Depois do consenso neoliberal, que fez da globalização um projeto inevitável e vitorioso, o planeta começa a colher o lado B dessa história. Hoje, o desemprego e a desvalorização do trabalho tomam conta de nações orgulhosas de seu passado. O humanismo de ontem foi substituído pelo descarte humano de hoje. O que parece chocar os países centrais é que o veneno que exportaram por décadas para o Terceiro Mundo retorna hoje a eles mesmos como doença. Por séculos, quiseram convencer que o receituário da eficiência e da competição interessava à maioria das pessoas, ainda que os derrotados, pobres e marginalizados estivessem do outro lado do mundo. Hoje a carne dói dentro de casa.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em seu mais recente livro, Danos colaterais, explica essa dinâmica da história de maneira cristalina. Para ele, a classe política sempre tratou a pobreza como um problema da lei e da ordem, não da estrutura da economia. Além de esconder as raízes sociais e acusar o pobre por seu fracasso, ela oferecia a contrapartida do consumo vazio, da individualização extrema, da censura dos laços sociais e da despolitização.
Os desfavorecidos, explica o pensador, faziam parte de um risco calculado, da minoria que por incapacidade ficaria pelo caminho. Os valores humanos, como a segurança do Estado social (ele se recusa a falar em Estado de bem-estar social, o que seria tautologia), foram derrotados pelas palavras de ordem do crescimento econômico. O resultado, que hoje se vê na Europa, é o coquetel explosivo de desemprego, desigualdade social, discriminação racial e aumento de marginalizados.
Com isso, os danos colaterais vão se avolumando até tornar o homem vítima de sua incompetência e algoz de seu despreparo. Com isso, as soluções políticas, quando não caminham em direção ao preconceito e à xenofobia, costumam passar por cima de valores humanos para punir as pessoas por uma derrota que é estrutural.
Bom exemplo dessa operação é o que se vê no Brasil, quando se fala do problema do crack. Em vez de enxergar aí o signo de nossa injustiça social e de buscar alterar o quadro em dimensão política mais ampla, os viciados são considerados o problema e por isso não podem ser tratados como gente, legitimando ações que vão além de conquistas dos direitos humanos. Todos querem afastar o problema, e o problema não é a injustiça social, mas suas vítimas.
Brasil e mundo emanam sinais diferentes, de otimismo e derrota. Mas parecem se igualar em alguns pontos fundamentais. Talvez o mais importante deles seja a necessidade de tomar novamente o destino nas mãos. O que isso tem a ver com as greves? Tudo.
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