Gustavo Fonseca
Estado de Minas: 19/01/2013
Com a proliferação na mídia brasileira do que o professor Ataliba de Castilho chama de consultórios gramaticais, as questões relacionadas à língua portuguesa por muitos anos praticamente se resumiram ao certo ou errado, num viés policialesco das múltiplas modalidades da linguagem, o que limitava a discussão sobre o tema. Recentemente, porém, três fatos evidenciaram o olhar míope desses “guardiões do bom português”, excessivamente presos à divulgação de regras gramaticais quase sempre controvertidas, em detrimento de uma reflexão mais ampla sobre a linguagem. O polêmico Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, inicialmente previsto para entrar definitivamente em vigor em 1º de janeiro deste ano e protelado para 2016, sem dúvida é o mais importante assunto linguístico do momento, mas outros dois também merecem atenção dos especialistas e do público em geral: a batalha dos estudantes pelo acesso à correção das redações do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e a ingerência da presidente Dilma Rousseff no uso da língua, levando seus auxiliares do primeiro escalão a utilizar termos que em outras circunstâncias dificilmente empregariam, a começar pelo dissonante “presidenta”.
Há poucos meses, logo depois dos Jogos Paraolímpicos de Londres, o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, afirmou que a presidente Dilma Rousseff queria vetar o uso da palavra “paralímpico”, voltando-se a utilizar o termo “paraolímpico”, a forma registrada nos principais dicionários brasileiros. Segundo o ministro, para a mandatária “paraolímpico” seria a palavra mais correta e não deveria ter sido substituída em novembro de 2011 por determinação do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) – grafia empregada no site oficial da entidade –, supostamente por exigência do Comitê Paraolímpico Internacional. Além disso, argumentou-se que o CPB visava a se aproximar do termo inglês paralympic e da forma empregada em outros países de língua portuguesa, inclusive a nação lusa e seu Comité Paralímpico de Portugal.
Apesar de concordar com Dilma Rousseff neste caso e ver nessa troca uma inutilidade e mesmo uma submissão da CPB ao estrangeirismo, é ridículo uma presidente determinar a seu bel-prazer qual grafia a ser utilizada nos documentos oficiais – e mais ainda um ministro de Estado vir a público divulgar essa ordem da chefe. Da mesma maneira, é cômico ver uma senadora da base aliada do governo (a hoje ministra da Cultura, Marta Suplicy) interrompendo o presidente do Senado, José Sarney, que se referia à presidente, para corrigi-lo. E erradamente, deve-se dizer, já que os dicionários registram tanto “a presidente” quanto “a presidenta”.
Menos engraçada, porém, é a discussão a respeito das privatizações dos aeroportos e estradas brasileiras, que Dilma e seu governo insistem em chamar de “concessões públicas” para tentar diferenciá-las das medidas adotadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Neste ponto, evidencia-se o viés político da linguagem, e o que inicialmente era tido apenas como uma preferência pessoal da “presidenta” Dilma passa a ter implicações sérias ao rumo do país. Afinal, ao eleitor, interessa diretamente saber o que diferencia uma privatização de uma concessão pública. Mais ainda, por exemplo, ao velho militante petista que tanto criticou as medidas econômicas de FHC.
Já a importância de ter acesso às redações corrigidas do Enem e eventualmente contestá-las, inclusive judicialmente, é mais óbvia. Por décadas, os critérios e disparidades na avaliação escrita dos candidatos ao ensino superior foram mantidos longe do conhecimento da população e quem se aventurou a tentar analisar o trabalho dos corretores de redação se viu impedido por inúmeros obstáculos. Afinal, em nada interessaria às universidades abrir essa caixa de Pandora. Atualmente, contudo, a questão vem se modificando, apesar da relutância e dos recursos impetrados pelo Ministério da Educação (MEC), e os alunos, espera-se, terão acesso às provas corrigidas. A inevitável enxurrada de contestações, sem dúvidas, vai trazer à tona as falhas de nossas bancas examinadoras, sempre tão céleres a divulgar na internet as já famosas “pérolas do Enem”. Mas, como crítica sempre é melhor com autocrítica, esses profissionais sem ética vão se ver forçados a rir dos próprios erros e incoerências.
Pela natureza da atividade, é inevitável que haja disparidades nas correções e isso em si não é um problema. O problema é tentar impedir a contestação das falhas e a exposição de gente inapta ao serviço, o que só deporia mais uma vez contra o MEC, responsável pelas trapalhadas recorrentes do Enem. Se o propósito do governo petista, porém, é democratizar o acesso ao ensino superior no país, dando mais oportunidades a camadas sociais que antes se viam impedidas de cursar uma faculdade, é mais do que necessário que o próprio processo seletivo seja transparente e esteja aberto à contribuição popular, inclusive com críticas e contestações.
No caso do Novo Acordo Ortográfico, não seria viável democratizar as decisões a tomar, já que o assunto exige expertise nos estudos linguísticos e em língua portuguesa, mas também não parece ser uma boa decisão tê-lo deixado no Brasil a cargo de apenas uma pessoa: o professor e gramático Evanildo Bechara. Com dezenas de linguistas e filólogos de nível internacional espalhados pelas melhores faculdades de letras do país, foi temerário não consultá-los quanto às novas regras, bem como outros intelectuais e escritores consagrados, o que limitou os pretensos avanços que justificaram as novas regras. Não por acaso, as críticas às mudanças proliferam nas academias e nos meios de comunicação. Um debate saudável que deveria ter sido realizado antes da publicação do acordo. Agora, com seu adiamento para 2016, abre-se uma janela de oportunidade para remover esse obstáculo e trazer à discussão outros especialistas e autoridades, uma medida que não interessa aos que ungiram mestre Bechara juiz supremo da grafia em língua portuguesa. Mesmo porque, comprometeria o próprio acordo tal qual elaborado.
Meios e fins Como bem frisaram vários autores na imprensa nacional recentemente, muitas das finalidades do novo acordo são em si questionáveis, a começar pela melhora do intercâmbio cultural entre os países de língua portuguesa e a aproximação dessas nações. A simples modificação de regras de acentuação e emprego do hífen e trema, entre outros tópicos contemplados no acordo, em nada facilita esse estreitamento de laços, que requereria outras políticas mais eficazes, como melhor difusão pelos países de língua portuguesa do que se publica nas nações dessa comunidade e maior acesso de estudantes aos centros educacionais dos países irmãos. E aqui novamente as medidas a serem adotadas deveriam passar por ampla análise de especialistas e autoridades de todos os países de língua portuguesa, visando às melhores soluções.
Quanto às novas regras ortográficas em si, elas mereceriam um artigo à parte para discutir muitos de seus pontos. Mas deve-se dizer que saltam aos olhos vários problemas, como o uso do hífen, ainda com um sem-número de exceções que acabam por jogar por terra a regra, além de disparidades entre os principais dicionários brasileiros. O Houaiss e o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp), por exemplo, registram “francoatirador”, “proativo”/“pró-ativo”, enquanto o Aurélio grafa “franco-atirador” e registra apenas a forma “proativo”. Por outro lado, as três publicações mantiveram a grafia “cor-de-rosa” e “mais-que-perfeito” devido ao “uso consagrado”, critério que não foi considerado em milhares de outros termos, nos quais prevaleceu a regra de que não se emprega hífen em locuções (Escrevendo pela nova ortografia: como usar as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa). Além disso, há vários exemplos de absurdos, como grafar “ponta-esquerda” e “ponta-direita” (com hífen) e “lateral esquerdo” e “lateral direito” (sem hífen), segundo o Aurélio e o Houaiss, como bem observado pelo colega da editoria de Esportes Benjamin Abaliac. Por que da diferença?
Esses poucos casos, apenas relacionados ao hífen, talvez pareçam de menor relevância, mas não são por explicitarem que as novas regras deixam margem a muitas possibilidades e variações de grafia. Mais um exemplo de problema cuja solução não deve ser deixada às mãos de apenas uma pessoa, por mais competente que ela seja. Não por acaso, muitas mudanças desnecessárias acabaram sendo dicionarizadas, como a nova grafia de “bem-feito”, o horroroso “benfeito”. Fora situações com dois pesos e duas medidas, como eliminar o acento diferencial de “pára”, do verbo parar, mas aceitar as grafias “fôrma” e “forma” para designar o vasilhame.
No fim das contas a pergunta que resta é: de que maneira alterações como essas facilitariam o intercâmbio cultural entre os países de língua portuguesa e aumentariam o peso de nossa língua em âmbito internacional? A conclusão a que se chega é clara: não parece haver argumentos convincentes para defender a reforma ortográfica como meio eficiente de obter esses resultados. Da mesma forma, não há como apontar diferenças substanciais entre a privatização empreendida pelo governo Fernando Henrique Cardoso e as concessões públicas do governo Dilma Rousseff. Muito menos explicar por que candidatos a uma vaga no ensino superior do país não podem ter acesso à correção de seus textos nem questioná-la, até judicialmente.
Como resultado do debate desses temas, sobretudo a respeito do novo acordo, espera-se que o brasileiro se envolva mais ativamente com os assuntos relacionados à língua portuguesa e que as colunas jornalísticas dedicadas a ela ampliem definitivamente seu enfoque, indo além da mera divulgação da gramática normativa. De preferência com maior participação dos linguistas e filólogos brasileiros, hoje praticamente confinados nas universidades país afora, sem contato com o público leigo. Afinal, na língua e na política, quanto mais amplo o debate, melhor. Sem margem a imposição alguma, seja de um gramático, seja da presidente.
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