Afixados à noite, não era raro encontrar aí epítetos injuriosos, gozações, desenhos obscenos
Assistiu, também, a uma circulação maior de textos, tanto na vida privada quanto na praça pública. No novo mundo do impresso, panfletos tinham vários papéis -desculpem o jogo de palavras- e eram chamados de "papelinhos".
Manuseados por prazer, devoção, poder ou saber, divulgavam eventos, explicavam fatos, celebravam conquistas, convenciam a opinião pública.
Impressos ou manuscritos, eram colados em lugares onde pudessem ser lidos por passantes. Afixados clandestinamente, na maior parte das vezes à noite, não era raro encontrar aí epítetos injuriosos, gozações, desenhos obscenos e palavrões.
No Brasil, distribuídos de mão em mão ou lidos em voz alta para um público ansioso por notícias, tais papelinhos ganharam visibilidade entre 1820 e 1822.
Foram anos incendiários nos quais, em capitais como Salvador e Rio, a população se dividiu entre a fidelidade à coroa portuguesa ou o desejo de autonomia política.
E, longe de serem consumidos passivamente, tais panfletos faziam parte da ação política: "Às armas, cidadãos", concita um deles com sabor de Marselhesa.
E é ele que dá título ao precioso livro organizado por três especialistas: José Murilo de Carvalho, Lúcia Bastos e Marcello Basile.
Raríssimos, antes guardados nas Coleções Especiais do Arquivo do Itamaraty, os 32 panfletos aí reunidos revelam a combustão que marcou a época.
Neles, a febre política se expressa numa comovente caligrafia: letras tortas ou de fôrma, erros de português ou listas de nomes, frases diretas ou rimas poéticas nos contam como se sentiam os moradores da América portuguesa frente a questões como a futura Constituição portuguesa, o rei dom João 6º, "os aduladores e sanguessugas do Estado", "a anarquia na cidade", enfim, um retrato nítido dos debates políticos de então.
Mais. Retrato de diferentes vozes: a dos letrados eruditos e a das ruas. A reunião de documentos é tão mais importante quanto os estudos sobre os anos que antecederam a emancipação de Portugal vêm revelando os bastidores de um movimento que oscilava entre ser fiel às ideias liberais e ao constitucionalismo ou manter-se atrelado à dinastia de Bragança e a unidade do império português.
Se a revolução em curso hoje, graças aos meios eletrônicos, é considerada maior do que a de Gutemberg, restam lições do passado.
Um dos papelinhos previne: "Estais em tempo de pôr esta Corte em ordem, e se agora não o fazeis, vamos a consumar a vida a esta corja de ladrões!". Judicioso papelinho!
MARY DEL PRIORE é historiadora e autora de "Histórias Íntimas" (Planeta do Brasil).
ÀS ARMAS, CIDADÃOS!
ORGANIZAÇÃO José Murilo de Carvalho, Lúcia Bastos e Marcello Basile
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 42 (240 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
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