sábado, 19 de janeiro de 2013

Saga de um homem torturado - J. D. Vital‏



Estado de Minas: 19/01/2013 

Via Crucis de Botero, em exposição em Portugal: imagens da humanidade que sofre
Botero está em Lisboa. Mas somente até dia 27, quando a exposição Via Crucis – A Paixão de Cristo, pintada pelo artista plástico colombiano Fernando Botero, deixará o Palácio Nacional da Ajuda rumo à Alemanha e à Espanha. Depois, a mostra com a última série de pinturas desse conterrâneo mágico de Gabriel García Márquez seguirá para o Líbano e o México.

São 27 telas a óleo sobre a paixão e morte de Jesus, algumas de dimensões tão grandes quanto os personagens retratados nos padrões renascentistas do artista, volumosos, de contornos arredondados, sensuais, escandalosamente humanos. Outros 34 desenhos sobre papel fazem parte da via sacra tropical que já foi exposta em Nova York e em Medellín, na Colômbia, sua terra natal. 

 Segundo a imprensa portuguesa, que acompanha com interesse a mostra desde sua abertura em 15 de novembro, os mais recentes trabalhos de um dos mais destacados artistas contemporâneos no plano mundial surpreende e inquieta. A começar pelas explicações do próprio Botero aos jornalistas sobre suas obras de caráter religioso, embora ele não o seja. Nelas, garantiu, “não há nenhuma representação de Deus como Deus”.

Na paixão segundo Botero, há a dor, a tortura e a violência. Ele retoma o tom indignado da série sobre os casos de tortura na prisão de Abu Ghraib, durante a ocupação do Iraque pelas tropas do governo de George Walker Bush. No quadro Flagelação de Cristo, 205cmX99cm, o corpo grandalhão de Jesus expressa sofrimento e dignidade mesmo coberto de sangue. 

Em Jesus e a multidão, Cristo ocupa o centro do mosaico de caras humanas dos nossos dias. Indiferentes, elas o desconhecem, não olham para ele, não enxergam sua coroa de espinhos. Na tela Jesus pregado na cruz, o colombiano destaca o corpanzil da vítima deitada sobre o lenho, ao fundo um soldadinho romano mete-lhe um prego no pé direito. Em Abu Ghraib, Botero também exalta as vítimas e despreza os torturadores.

Segundo ele, seu Cristo, de formas rechonchudas e pele esverdeada como aquele pregado na cruz tendo ao fundo o Central Park e os prédios de Manhattan, “é um homem torturado”. Disse ainda que a única alusão à divindade de Jesus aparece em um único quadro, o Enterro de Cristo, em que um anjo sobrevoa o sepulcro.

Ana Piedad Jaramillo, diretora do Museu de Antioquia, ao qual Botero doou a Via Crucis, disse aos jornalistas de Lisboa que o artista pincelou elementos contemporâneos e bem-humorados nas telas. Como o relógio de pulso em Simão Cirineu. O mesmo Simão veste calça preta com cinto e camisa de mangas compridas marrons e chapéu de feltro enquanto sustém a cruz para alívio de Jesus, que, sob a lança do soldado romano, cai pela primeira vez.

Condição humana Em nenhum momento, os quadros beiram a galhofa dos bonecões do carnaval de Olinda ou o primitivismo naïf. Pelo contrário, as figuras revelam intensa luminosidade da condição humana na América Latina. Verônica, uma tela de 114cmX58cm, traz uma boa samaritana carnuda, de formas sensuais, vestido midi vermelho, rabo de cavalo amarrado por fita vermelha e três gotas de lágrimas na face.

São latino-americanos, de farda e boné de banda de música, como aqueles estereótipos do cinema americano, os soldados que espetam Jesus com a lança e o batem com cassetetes. Nada mais dramático e comovente do que Maria, a mãe de Jesus. A Madre afligida, pintada por Botero em 2010, externa uma Nossa Senhora das Dores, antípoda das figuras esquálidas das loiras madonas caucasianas. 

Mater Dolorosa, a Mãe de Cristo, segundo Botero, parece a mãe da gente. De rosto descuidado, absolutamente normal. Ela é despojada do halo angelical e da perfeição jovial patente no mármore branco da Pietà esculpida por Michelangelo di Lodovico Buonarrotti Simoni em 1499. Traços de camponesa, mãozinhas gordinhas, a Piedade de Botero é a encarnação trivial e comovente do sofrimento da mulher comum que perambula a pé, a cavalo ou de lotação pelas ruas da América do Sul. 

Com 80 anos, completados no ano passado, Fernando Botero nasceu em 1932 em Medellín, na região de Antioquia. Seu ilustre conterrâneo e Prêmio Nobel de Literatura, o escritor Gabriel García Márquez, nasceu cinco anos antes, em março de 1927. Os dois colombianos representam o que há de mais genial nas artes do continente.

Em entrevista à agência EFE, Fernando Botero desqualificou seu estilo de pintar e esculpir figuras gigantescas afirmando que durante toda a sua vida jamais pintou “uma única gorda”. “Expressei o volume, busquei dar protagonismo ao volume, torná-lo mais plástico, mais monumental, quase uma comida, por assim dizer, arte comestível. A arte deve ser sensual”, afirmou.

J.D. Vital é jornalista e autor de Como se faz um bispo.

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