domingo, 17 de fevereiro de 2013

Palavra de mulher ( Maria de Medeiros ) - Ailton Magioli‏

Estado de Minas - 17/02/2013


Atriz, cantora e cineasta portuguesa Maria de Medeiros estrela a peça Aos nossos filhos no Brasil. Trabalho, com direção de João das Neves, trata das novas configurações familiares 



Ainda em plena comemoração do ano de Portugal no Brasil e do Brasil em Portugal, desde 2012, Maria de Medeiros parece ter resolvido fazer de 2013 o seu ano no Brasil. “Foi uma coincidência, até porque a peça da Laura Castro surgiu inesperadamente e foi um processo muito rápido”, afirma, divertindo-se, a atriz, cantora e cineasta portuguesa, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Brasília até o dia 24, com a peça Aos nossos filhos.

No espetáculo que relata as relações familiares contemporâneas, Maria vive Vera, a mãe divorciada, com três casamentos, filhos em dois deles, além de enteados, enquanto a atriz e dramaturga brasileira Laura Castro interpreta a filha Tânia, casada há 15 anos com uma mulher. O momento em que a filha decide contar para a mãe que vai ter um filho (a companheira está grávida depois de uma inseminação) serve de pano de fundo para uma série de reflexões sobre as duas gerações, que vai do advento do divórcio no Brasil, na década de 1970, ao debatido casamento gay, na atualidade.

Maria chegou ao texto de Laura Castro por intermédio do cineasta Guilherme Hoffmannn, cunhado da autora, que conheceu a artista portuguesa na 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no ano passando. Na oportunidade, ele exibiu Metrô e ela Repare bem, em que narra a história de três gerações de mulheres cujo destino foi marcado pela luta política. 

Em cena no espetáculo teatral, além de Maria de Medeiros e Laura Castro, o pianista Felipe Bernardo, que interpreta a trilha ao vivo. A direção é de João das Neves, autor da célebre O último carro, que transformava o Brasil dos anos 1970, simbolicamente, em um trem desgovernado.

 “A peça coincide com o meu filme, proposto pela comissão de anistia e reparação”, justifica Maria de Medeiros, cujo documentário tem como ponto de partida a história de Eduardo Leite, o Bacuri, casado com Denise Crispim, ambos militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Produto de todo o processo vivido pela atriz portuguesa nos últimos tempos, a versão que ela fez para o espanhol da canção Aos nossos filhos (Ese gustoque), de Ivan Lins e Vítor Martins, que batiza o espetáculo, é uma homenagem às mulheres que ela entrevistou para o filme. 

A pérola, já gravada por Elis Regina, consta do disco Pássaros eternos, que Maria lança no mês que vem no Brasil. Trata-se do terceiro CD da artista, que, anteriormente, gravou Little more blue (2007) e Penínsulas e continentes, de 2010.“Eu amo o Brasil desde sempre”, diz Maria de Medeiros, que, fascinada e apaixonada pelo país, acaba envolvida com trabalhos e projetos que a tragam ao Brasil. Um deles, realizado entre Belo Horizonte e Portugal, foi o filme O contador de histórias, de Luiz Villaça, que narra a trajetória de Roberto Carlos Ramos. 

A identificação da atriz com o Brasil nasce da cultura. Em especial da música: “Cresci ouvindo a música brasileira, que nos formou não apenas musical, mas poeticamente também”, revela. Para a artista, a MPB é uma música de pensamento, que reflete o Brasil e a sua realidade. “Mas também sigo, desde sempre, o cinema e o teatro brasileiros”, faz questão de ressaltar a artista portuguesa, que vê no Brasil “um país de grande criatividade”. A primeira vez que ela esteve no país foi na década de 1980, graças a um intercâmbio com a França, onde vive. “Tive uma visão muito ampla do país, na época”, recorda a atriz, que diz ter ficado “maravilhada” ao visitar Ouro Preto.

Filmar em Minas Gerais, avalia, foi uma experiência importante. “Fiz um lindo filme aí”, diz, lembrando de O contador de histórias, cuja produção passou também por São Paulo e Paulínia, além de Portugal. “Foi uma grande alegria conhecer Luiz Villaça e Denise Fraga”, acrescenta a portuguesa, que contracenou com a atriz no filme do marido. A atuação de Maria de Medeiros em várias frentes de trabalho (teatro, cinema e música) vem da infância. “Acho que já fui criada nesta perspectiva”, diz a filha de pai maestro e pianista, que também dirigiu filmes e escreveu livros. 

Saídas para a crise

A exemplo de alguns amigos portugueses, Maria de Medeiros diz gostar de experimentar o trabalho em várias línguas. A crise na Zona do Euro, de acordo com ela, tem afetado muito o mercado de trabalho. “Sobretudo na Península Ibérica”, afirma, admitindo que a vida de artista tem sido duríssima na região, onde os novos governos têm dado fim aos ministérios da cultura, afetando principalmente o cinema.

O último filme que Maria fez na região foi Viagem a Portugal, de Sérgio Tréfaut, de 2010, no qual ela faz papel de uma ucraniana. Por se tratar de língua que não domina, a atriz teve de contar com ajuda de uma professora russa. Ao contrário do Brasil, onde ela diz se sair bem com o sotaque local, como mostra em Aos nossos filhos. 

Maria de Medeiros estreou profissionalmente no cinema aos 17 anos, em Silvestre, do diretor português João César Monteiro. O teatro veio a seguir. Já a música, de acordo com ela, sempre esteve muito presente em sua vida, por influência do pai e da irmã mais nova. Profissionalmente, no entanto, ela só viria a encarar a música a partir de 2006. “Não me atrevia”, confessa Maria, lembrando que o pai e a irmã tiveram mais de 20 anos de estudos para se tornarem músicos. “Como não tinha de escrever uma sinfonia, bastavam as minhas canções, acabei tomando coragem”, conta a artista, que, depois de dois discos como intérprete, está lançando aquele que considera o mais autoral de todos. 

Entre os longa-metragens que ela fez destacam-se Henry e June, de Philip Kaufman, e Pulp fiction, de Quentin Tarantino. E mais: a interpretação em Três irmãos, de Teresa Villaverd, lhe valeu os prêmios de Melhor Atriz nos festivais de Veneza e de Cancun, enquanto Adão e Eva, de Joaquim Leitão, lhe rendeu um Globo de Ouro na categoria de Melhor Atriz. No Brasil, ela ainda participou de O xangô de Baker Street, de Miguel Faria Jr.

AOS NOSSOS FILHOS

CCBB, Brasília, até o dia 24
Teatro de Arena, Caixa Cultural, Rio, de 7 a 31 de março
Ano do Brasil em Portugal, Lisboa e Porto, maio, em local ainda a ser definido
São Paulo, julho, em local ainda a ser definido
Belo Horizonte e outras capitais, a partir de agosto

Conflito de gerações no palco 

Ailton Magioli


 Inspirada na vida real, a peça Aos nossos filhos nasceu do desejo da atriz carioca Laura Castro de contar a própria experiência de vida. Casada há 13 anos com a também atriz e produtora Marta Nóbrega, as duas têm três filhos: Clarissa (adotada, de 3 anos), Rosa (gerada por Marta, de 2) e José (gerado por Laura, de oito meses).

Personagens do programa Novas famílias, dirigido por João Jardim no canal pago GNT, as duas são praticamente pioneiras na discussão das questões ligadas a famílias homoafetivas no Brasil. “Com a peça, o nosso objetivo é contribuir com a questão”, admite Laura. Na opinião da dramaturga e atriz, trata-se, na verdade, de um espetáculo sobre o preconceito, em que mãe e filha estão diante de um embate. 

Vera, a personagem de Maria, é uma mulher que lutou contra a ditadura no Brasil, pegou em armas, foi exilada e morou em diversas partes do mundo. A filha Tânia, interpretada por Laura Castro, por sua vez, é mais careta e vive um casamento de 15 anos com a companheira, grávida do primeiro filho do casal. A trama se passa na noite em que Tânia conta a Vera que vai ter um filho (a companheira está grávida), trazendo à cena conflito das duas gerações.

Originalmente escrito para Marieta Severo, a personagem Vera, que Maria de Medeiros interpreta na peça, também foi feita para uma atriz engajada, segundo Laura Castro. “Como a Marieta não podia na época, pensei em adiar a montagem por um ano”, recorda a autora, admitindo jamais ter pensado em Maria de Medeiros. 

“Além da série de coincidências na temática política, quando ouvi o CD de Maria em que ela cantava a versão de Aos nossos filhos em espanhol, fiquei arrepiada”, relata, salientando que depois de tanta coincidência, o impacto foi imediato dos dois lados. “São discussões que para mim começaram dentro de casa que, de repente, ganham importância internacional”, orgulha-se a carioca, admitindo que a artista portuguesa trouxe tal dimensão com clareza para o trabalho. Antes da peça, Laura havia escrito a infantil Menininha, que montou com o diretor João Cícero. 

Da sinopse de três páginas, sob o incentivo do diretor João das Neves, Laura Castro chegou ao texto do espetáculo. Além de um show com Titane, que é casada com João, Laura ainda produziu os musicais Besouro cordão de ouro e Galanga Chico Rei, ambos de temática negra, dirigidos por João das Neves. “Além de uma atriz muito generosa, Maria de Medeiros tem um trabalho preciso”, elogia a companheira de cena do novo espetáculo. “No palco, ela é uma personagem brasileira”, diz, elogiando o sotaque da atriz portuguesa, lembrando que como a personagem Vera viveu no exílio, ela acaba praticando um português um pouco diferente do falado no Brasil. 

Sem preconceito

Democrata por vocação, Maria de Medeiros acredita que seja importante a esta altura falar sobre as novas configurações familiares. “Daí o fato de Aos nossos filhos poder ser apresentada em qualquer parte do mundo”, aposta a artista portuguesa. No momento, coincidentemente, ela escreve o roteiro de um longa-metragem sobre um casal masculino que, no desejo de ter filhos, tem um bebê inseminado nos Estados Unidos. “Com a sociedade evoluindo, as instituições têm só de segui-la e reconhecer as mudanças”, prega a artista, para quem o Brasil está adiantado na discussão da relação homoafetiva, se comparado ao continente europeu. Publicação:
 17/02/2013 04:00

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