domingo, 17 de fevereiro de 2013

Cidade que trabalha e morre de tédio - ROBERTO ARLT

folha de são paulo
tradução GUSTAVO PACHECO


SOBRE O TEXTO Este texto, de 15 de abril de 1930, integra série publicada por Roberto Arlt entre 2 de abril e 29 de maio daquele ano no diário argentino "El Mundo". O conjunto das "Águas-Fortes Cariocas" será lançado pela primeira vez em livro, com tradução e organização de Gustavo Pacheco, em setembro, pela Rocco.
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No conceito de todo cidadão que respeita os direitos da preguiça, porque também a preguiça tem direitos segundo os sociólogos, o café desempenha um lugar proeminente na civilização dos povos. Quanto mais uma raça for fã de ficar de papo pro ar, melhores e mais suntuosas cafeterias terá em suas urbes. É uma lei psicológica, e não há o que fazer: assim dizem os sábios.

AQUI SE TRABALHA
Nós, habitantes da mais linda cidade da América (me refiro a Buenos Aires), acreditamos que os cariocas e, em geral, os brasileiros, são gente que passa o dia inteiro de pança pro sol, desde que "Febo aparece" até a hora em que vai roncar. E estamos redondamente enganados. Aqui as pessoas trabalham, sem brincadeira. Ganham o pão com o suor da testa e das outras partes do corpo que também suam como a testa. Dão duro, dão duro no batente incansavelmente, e juntam o que podem. Suas vidas se regem por um princípio subterrâneo de atividade, como diria um senhor sério escrevendo artigos sobre o Brasil. Eu, por minha vez, digo que pegam no batente todo santo dia e nem sinal de sábado inglês! Aqui não há sábado inglês. O domingo como Deus manda, que Deus não inventou o sábado inglês. E ali se acabaram as festas. Trabalham, trabalham brutalmente e não vão ao café exceto por breves minutos. Tão breves, que quando você fica um pouco além da conta, é posto pra fora. É posto pra fora, não pelos garçons, mas sim pelo encarregado de cobrar.

E O CHAMADO CAFÉ "EXPRESS"?
Antes de mais nada, não se conhece o café "express", essa mistura infame de serragem, borra de café e outros resíduos vegetais que produzem uma mistura capaz de produzir uma úlcera no estômago em pouco tempo. Aqui, o café é autêntico, como o tabaco e as belezas naturais das mulheres.
Os cafés têm poltronas nas calçadas, mas na calçada não se serve café. É preciso tomá-lo lá dentro.
Lá dentro, as mesas estão rodeadas de cadeirinhas que dão vontade de jogar na rua com uma patada. Vi sentar um gordo, que precisou de uma cadeira pra cada perna. A mesinha de mármore é reduzida; enfim, parecem construídas pra membros da raça dos pigmeus ou pra anões. Você se senta e começa a ficar invocado. Uma orquestra de negros (em alguns bares) arma com suas cornetas e outros instrumentos de sopro um alvoroço tão infernal que você mal acabou de entrar e já quer sair.
Você senta e trazem o "feca". Sem água. Percebem? Em um país onde faz tanto calor, servem café sem água. Você engole um palavrão, e diz berrando:
- E a água? Vendem água aqui?
- "O senhor quer água gelada um copo de água gelada." E trazem a "água gelada" com um pedacinho de gelo. O copo é daqueles de beber licor, não água.
Você ainda não terminou de tomar o café, e um idiota vestido de preto, que passa o dia fazendo malabarismos com moedas, se aproxima da mesa e bate no mármore com um moedinha de mil réis. Mil réis são trinta centavos. Você, que ignora os costumes, olha o malandro e este olha de volta. Então você diz:
- Por que não bate no próprio focinho em vez de bater no mármore?...
É preciso desembolsar e ir embora. Pagar os seis centavos que custa o café e dar no pé. Se você quer ficar de bobeira, tem as poltronas da calçada. Ali são servidos bebestíveis que custam um mínimo de 600 réis (18 centavos argentinos).

"PAS" DE GORJETA
O garçom não recebe gorjeta. Ou melhor, ninguém dá gorjeta com o café. O homem que faz malabarismos com os cobres é o encarregado de cobrar, e por conseguinte o único que afana se é que rouba, porque este é um país de gente honrada.
De modo que o espetáculo que o olho do estrangeiro pode gozar em nossa cidade, que é o de vadios robustos tomando sombra duas horas em um café bebendo um "negro", é desconhecido aqui. As pessoas se dirigem às poltronas da calçada na hora da moda. O resto da multidão entra no café pra ingerir uma xicrinha de "feca" e se manda. Aqui se trabalha, se dá duro e se leva a vida a sério.
Como fazem? não sei. Homens e mulheres, pequenos e grandes, negros e brancos, todos trabalham. As ruas fervem como formigueiros nas horas de maior movimento.

CONCLUSÕES
Se a metáfora não fosse um pouco atrevida, diria que os cafés daqui são como certos lugares incômodos, onde se entra apressado e se sai mais rápido ainda.
Cidade honrada e casta. Não se encontram "mulheres de má fama" pelas ruas; não se encontra nem um só café aberto à noite; não há jogatina, não há coletores de apostas. Aqui, as pessoas vivem honradissimamente. Às seis e meia todo mundo está jantando; às oito da noite os restaurantes já estão fechando as portas... É como eu disse antes: uma cidade de gente que trabalha, que trabalha incansavelmente, e que na hora de ir embora, chega em casa extenuada, com mais vontade de dormir que de passear. Esta é a absoluta verdade sobre o Rio de Janeiro.

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