A igreja, o papa e a democracia
A fé pode sobreviver por outros dois milênios e até mais, mas, sem se abrir, o papado perde força
Coincidência, Suzana, mas eu vinha pensando nisso desde a segunda-feira em que aFolha me cortou as férias para cobrir a renúncia de Bento 16. Só sinto que minha soberba ainda não tenha chegado ao ponto de achar que posso responder.
Uma única resposta me parece óbvia: só uma instituição muitíssimo poderosa poderia resistir impávida a dois milênios de história, crises, confusões, guerras, paz e tudo o mais, segurando, hoje, 1,2 bilhão de fiéis. A mensagem, a Palavra, é, pois, tremendamente poderosa, ainda mais se se considerar que Cristo é também o eixo de sustentação de milhões mais que preferem outras denominações, e não a católica.
Mesmo as novas igrejas evangélicas, que estão roubando público do velho catolicismo, o fazem vendendo a sua interpretação da palavra de Deus -e o verbo vender vai mesmo sem aspas, que você me entende. Outra coisa, no entanto, é dimensionar "o tamanho do poder do papa". Eu não sei. Talvez nem seja mensurável.
Minha sensação, no entanto, é a de que os papas vêm perdendo apelo contínua e crescentemente. OK, sensações são traiçoeiras, mas já escrevi bastante tempo atrás, em outro espaço desta Folha, que viagens de João Paulo 2º ao Brasil, por exemplo, podem ser um enorme sucesso de público, atos de "pop star", mas seus efeitos desaparecem assim que o papa sobe as escadas do avião para ir-se embora.
Se ele convertesse os não crentes, o número de fiéis subiria no Brasil, em vez de cair, antes e depois das várias visitas do anterior e do atual papa. Por quê? É tema para sociólogos e antropólogos, não para meros repórteres.
A minha sensação -e, repito, sensações são traiçoeiras- é a de que algo tem a ver com democracia, com a arquicitada frase "Roma locuta est, causa finita est", ou seja, com o espírito predominante na hierarquia católica segundo o qual, se Roma falou, não cabe mais discutir questões doutrinárias.
O avanço da ideia das liberdades públicas tornou obsoleto esse "diktat" imperial, erroneamente atribuído a santo Agostinho. O próprio Bento 16 produziu uma frase, na audiência com os párocos de Roma, na quinta-feira, que renega essa verticalidade tão absoluta: "Nós, cristãos, somos todos o corpo vivo de Cristo".
Corpos vivos querem participar, querem ter voz em tudo o que diz respeito às suas vidas e às de suas comunidades. De alguma forma, o Concílio Vaticano 2º, que está completando 50 anos, abriu a igreja para esse caminho, mas ele foi fechado nas décadas seguintes, especialmente com João Paulo 2º e Bento 16.
Resta saber se o Colégio de Cardeais preferirá a inércia de acreditar que o que durou dois milênios durará para sempre do jeito que está ou reabrirá o caminho para que os fiéis deixem de ser súditos e se sintam de fato parte do "corpo vivo de Cristo".
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