domingo, 17 de fevereiro de 2013

Pobre brasileirinha! - Roberto Arlt

folha de são paulo

tradução GUSTAVO PACHECO

SOBRE O TEXTO Este texto, de 4 de maio de 1930, integra série publicada por Roberto Arlt entre 2 de abril e 29 de maio daquele ano no diário argentino "El Mundo". O conjunto das "Águas-Fortes Cariocas" será lançado pela primeira vez em livro, com tradução e organização de Gustavo Pacheco, em setembro, pela Rocco.
*
Passei por uma experiência dolorosa.
Cada vez que subia as escadas da pensão onde moro, vinha ao meu encontro uma índia cor de café, que me fazia sinais com as mãos para que subisse devagar. Hoje, intrigado, perguntei:
-- Mas, que diabos está acontecendo, que não dá nem pra caminhar? -- e a servente me respondeu:
-- A mocinha está muito doente.
-- Quem é a mocinha?
-- A filha da patroa.
-- Posso vê-la?
Me deixaram entrar.
A DOENTINHA
Em uma cama larga, sobre um amplo travesseiro, repousava a cabeça de uma moça de 19 anos. Grandes olhos negros, cabelo cacheado emoldurando as bochechas. Cumprimentei-a, e ela moveu ligeiramente os lábios. Observei-a de relance. Tinha a garganta envolvida em um lenço; debaixo dos lençóis brancos, se adivinhava um pobre corpo enfraquecido.
Amigas, maduras como grandes frutas, a rodeavam. Me apresentaram:
-- Este senhor é o jornalista argentino, o novo pensionista.
-- O que ela tem? -- perguntei. Me explicaram. Pleurisia, a garganta, enfim, essas meias palavras que disfarçam a doença terrível. Tuberculose pulmonar e laringite. Com razão não falava. Sorri e disse essas palavras tristemente doces que a gente se considera obrigado a dar a uma pobre criatura que nenhuma força humana pode salvar.
Ela me olhava e sorria. Achava graça no idioma, como a nós o português nos faz rir. Por momentos, um golpe de tosse a fazia estremecer sob os lençóis, e as amigas solícitas a rodeavam.
Quando saí me dedicou um sorriso que só existe nos lábios das doentes incuráveis.
Entrei em uma florista e pedi que preparassem um buquê de rosas brancas, e à tarde dei à índia servente para que levasse a ela. Que ao menos tivesse no quarto um pedaço de primavera. E que fosse um argentino quem tivesse levado"¦
ESTA NOITE
Esta noite tossiu muito. Mas tanto, que quando desci e entrei no dormitório, as amigas a seguravam, desvanecida, entre os braços. Tinha a cabeça caída sobre o ombro da índia, de cujos olhos caíam lágrimas.
A mocinha brasileira vai morrer. Dezenove anos! E saí à rua entristecido, pensando.
"É uma injustiça. Deus não existe. Essas coisas não deviam acontecer."
Repeti exatamente tudo o que diz um homem quando cai sobre sua cabeça uma grande desgraça. E no entanto quase não conheço essa criatura. Eu a vi pela primeira vez ontem pela manhã; mas havia tanta doçura em seus olhos escurecidos que senti pena por essa vida que escapava do seu peito, minuto a minuto.
Com razão me diziam pra caminhar devagar. Ela não consegue dormir. A cada momento é acordada pelos bondes que passam fazendo barulho. Se não são os bondes, é a tosse. E, com esse calor, o dia inteiro na cama! Está tão fraca que já não consegue caminhar. Só conserva a carinha totalmente oval e os grandes olhos, que falam, porque a garganta já quase não tem cordas vocais.
Agora vou visitá-la todos os dias. Digo ao entrar, "Como vai a menina?". E ela ri; porque deixou de ser menina há um bom tempo e já é senhorita.
Eu sei que acha graça do idioma "argentchino". Fica me olhando"¦
Então digo que o Brasil é muito bonito, que ela precisa ter esperanças na Nossa Senhora que tem na cabeceira (eu, falando de Nossa Senhora!); que não deve se afligir, que logo estará curada, que essas doenças assim são muito fantásticas, que já vai ver, logo poderá se levantar e sair pra passear.
Ela me olha em silêncio. Compreende que estou mentindo. Olha a Nossa Senhora, as amigas e sorri. Não é possível enganá-la. Ela sabe qual será o passeio que a espera. O último".
E me lembro do sanatório Santa María, nas serras de Córdoba. Me lembro das 500 mocinhas que, no Pavilhão Penna, estão prostradas como essa mocinha de 19 anos, para quem a vida só devia ser felicidade. E, de repente, uma pena enorme me sobe do coração até a garganta. O sorriso e as piadas me escapam, e saio pra rua dizendo, como diria um pobre negro ou um pobre branco, que não entende de livros nem de filosofia:
"E depois dizem que Deus existe. Coisas assim não deviam acontecer."
Evandro Carlos Jardim/Reprodução
Água-forte de Evandro Carlos Jardim Crédito: Evandro Carlos Jardim/Reprodução
Água-forte de Evandro Carlos Jardim Crédito: Evandro Carlos Jardim/Reprodução

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