domingo, 17 de fevereiro de 2013

Em "O Som ao Redor", todos temem a própria sombra

Lucia Nagib
especial para a folha de são paulo

RESUMO Para crítica Lúcia Nagib, longa-metragem de Kleber Mendonça Filho dialoga com cinema brasileiro por meio da subversão de símbolos e de recursos narrativos consagrados por autores como Glauber Rocha. Já Mauricio Puls vê no filme a dissolução do Brasil coronelista numa era de profunda transformação social.
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O segredo de "O Som ao Redor" está numa fórmula simples, mas de difícil execução: a perfeita integração de forma e conteúdo.
O próprio limite do quadro fílmico é suficiente para universalizar a prisão da classe média --de Recife, do Brasil, do mundo. Basta replicar esse quadro numa multiplicidade de blocos de apartamentos, de janelas e grades sobrepostas, de azulejos e ladrilhos quadriculados recobrindo interiores, de telas digitais que decrescem do televisor de 40 polegadas à câmera de vigilância, ao laptop e ao telefone celular.
O universalismo do filme é uma mera questão de quadro, escala e proporção, propriedades que o cinema manipula melhor que qualquer outro meio. Assim como o cineasta japonês Yasujiro Ozu (1903-63) universaliza o drama familiar ao comparar garrafas de saquê ao pilar de um templo ("Era Uma Vez em Tóquio", 1953), em "O Som ao Redor" o plano de uma massa de arranha-céus se conecta a um conjunto de garrafas vazias na sala de estar em que um casal dorme depois da festa e do amor, miniatura exemplar do que ocorre nas centenas de apartamentos ao redor.
Divulgação
Cena de "O Som ao Redor", de Kleber Mendonça Filho
Cena de "O Som ao Redor", de Kleber Mendonça Filho
Assim, embora limitado a uma rua de Recife, "O Som ao Redor" produz identidade regional e nacional. Mas, para isso, usa o reverso do paisagismo grandioso que caracterizou o Brasil no cinema novo e depois no cinema da retomada, o sertão imenso e as imagens de mar prometendo, e continuamente frustrando, a realização utópica do paraíso sonhado pelos colonizador europeu.
O "travelling" que acompanha a corrida de Manoel em direção ao mar nunca visto, em "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (Glauber Rocha, 1964), no qual o crítico Ismail Xavier identificou a teleologia da história, é aqui substituído pela câmera que persegue uma menina de patins na garagem de um prédio, ziguezagueando entre os carros e afinal chegando a um pátio murado repleto de babás e crianças encalacradas. Não há saída nem finalidade para o movimento reto, que se interrompe na imagem, tomada através da cerca, de um serralheiro instalando outra grade no vizinho.
Mesmo a bola que um guri insiste em chutar para além dos muros tem seu percurso cortado pela roda de um carro que a esmaga. O mar, ali na esquina, tornou-se invisível, escondido atrás dos arranha-céus em que se enclausuram os membros do clã de Francisco, dono da maioria dos imóveis no local. Antigo senhor de engenho, autêntico e repugnante homem cordial de que nos fala Buarque de Holanda, Francisco é o único que se arrisca a um banho noturno no mar infestado de tubarões.
Que o assunto é o país fica claro já nas imagens de abertura, uma série de fotos de arquivo de trabalhadores da zona canavieira, que o espectador descobre ao longo do filme constituírem os predecessores dos personagens vivos atuais, o "punctum" barthesiano que, como uma flecha da história, vem ferir os agentes do presente. Barthes fala do "retorno do morto" na fotografia, e Freud do "retorno do reprimido", ativo tanto no inconsciente individual quanto na esfera social.
Em "O Som ao Redor", o retorno do passado submerso se dá na forma de personagens cotidianos dotados de um duplo fantasmagórico. É o menino negro, seminu, clone do "menino-aranha" real, que escala árvores e muros e povoa os pesadelos da menina abastada, reclusa em seu quarto. E são os guardas-noturnos que se infiltram nos edifícios cercados e monitorados que se revelam os filhos vingativos de um agricultor assassinado pelos capangas de Francisco. Já havíamos encontrado esse personagem mefistofélico que, vindo das baixas esferas, penetra a festa dos ricos corruptos em "O Invasor" (Beto Brant, 2002), e o desastre não foi menor.
Mas não há drama nenhum, e muito menos nostalgia, nessa história que necessariamente termina em morte. A propalada superficialidade dos atores vai além da má atuação recomendada por Brecht para que o intérprete se distancie do personagem que representa. Aqui, os atores comungam da superficialidade dos seus personagens. Forma e conteúdo se unem outra vez, e desta vez para mostrar que o "status quo", se não é exatamente bom, também não é necessariamente ruim.
Parece-me auspicioso que a dona de casa Bia, esquecida na cama pelo marido que ronca e atormentada pelo uivo do cachorro do vizinho, arranje alternativas de satisfação sensual e sexual, ainda que seja com o fetiche da mercadoria que Marx condenava. Como o esperto prisioneiro comum que faz chegar a sua cela as drogas, os celulares e as armas de que necessita, Bia compra maconha do entregador de água e a fuma soprando a fumaça na mangueira de um aspirador de pó apoiado na janela.
Ainda mais inventiva, ela se masturba aproveitando-se da trepidação da máquina de lavar roupas. Nisto o filme se compara à sexualidade mirabolante de outra obra-prima pernambucana, "Amarelo Manga" (Cláudio Assis, 2003).
Sexo é também um invasor em "O Som ao Redor". Está no axé, tocado a todo volume pelo vendedor ambulante de CD, que canta "pega na banana" para a vizinhança inteira ouvir; no desenho animado assistido pela netinha da empregada doméstica, mostrando Iansã em lúbrico frenesi; no elevador em que o casal João e Sofia se agarra e que o zelador contempla em sua guarita pelo circuito de televisão.
Os sons e as imagens do mundo lá fora que se filtram e se infiltram, para deleite onanístico de personagens enclausurados conferem um sopro de vida ao universo árido e feio dos blocos de apartamentos. Aliás, os filhos pré-adolescentes de Bia, sofisticados nerds que aprendem chinês e discutem economia, parecem conhecer e aceitar as idiossincrasias da mãe; a cena em que Bia, deitada de bruços no sofá, se deixa massagear pelos filhos nos pés e nas costas é de dar inveja a muitas mães.
FANTASMAGORIA
Equivalentes às janelas, frestas e telas por onde penetram os laivos do mundo exterior, quartos, corredores e elevadores são caixas acústicas de um universo interior que se extravasa. Michel Chion chamou de "acousmêtre" o som cinematográfico sem fonte identificável na imagem que, por isso, tem poder de onisciência e onipresença. A fantasmagórica mistura de sons que acompanha muitas das imagens --rumor de vozes, máquinas, ondas, pássaros-- sem motivação na diegese parece ao mesmo tempo rodear e derivar dos personagens.
Mais uma vez, é a forma cinematográfica fazendo história, como na cena em que João e Sofia visitam Francisco no engenho. Uma sesta na rede dá o tom semionírico a uma fascinante descida ao hades profundo do Brasil. As portas dos quartos da casa-grande vazia e abandonada são uma a uma abertas pelo casal, que ouve os passos do avô no andar de cima como os de uma alma penada. O périplo se estende ao vilarejo local, culminando num cinema em ruínas em que ainda se ouve a trilha sonora de um filme com gritos de mulher.
Fantasia a um só tempo trágica e paródica, o fim do cinema aqui anunciado, em sintonia com o restante do filme, é inteiramente despido de páthos. Sua função é confirmar o império da contenção, dos gadgets e da miniatura que, queira-se ou não, é a realidade atual.
O guarda-noturno Clodoaldo afirma que sua arma é o celular. Alter-ego do cineasta, ele assiste e manipula, com sangue-frio, na minúscula tela do aparelho, o assassinato de um de seus pares num bairro de Recife, captado por uma câmera de segurança. A primeira imagem que temos de Clodoaldo é no monitor da câmera de segurança de Anco, tio de João e o único a ainda residir numa casa em meio às torres ao redor. Voyeur de voyeurs, vítima que logo irá assassinar, pressente-se que, no final, Clodoaldo terminará assim, como mera imagem captada pela câmera de segurança ao morrer.
"O Som ao Redor" é a irresistível somatória dessas réplicas. Com sua multiplicidade de telas e lentes, é uma alucinante "mise-en-abîme" em que todo mundo se parece e teme a própria sombra. É registro documental do que foi, testemunho do que é, pressentimento preocupante, mas necessário, do que virá.

Obra retrata fim do coronelismo no país

MAURICIO PULS
DE SÃO PAULO

Após tantos prêmios, não resta dúvida de que "O Som ao Redor" é o filme brasileiro mais significativo desde "Cidade de Deus" (2002). Nenhuma outra obra dos últimos anos produziu retrato tão abrangente da sociedade nacional, que de certo modo condensa a trajetória do país no período republicano.
O pano de fundo histórico aparece já na sequência de fotos de um antigo engenho de açúcar no Nordeste --que recordam as películas do cinema novo, com suas paisagens empobrecidas habitadas por personagens de Graciliano Ramos.
Essas imagens arquetípicas logo cedem lugar à crônica de uma rua da zona sul de Recife, em tudo igual aos bairros nobres das metrópoles do Sudeste. A maior virtude da obra consiste em captar a metamorfose daqueles tipos que povoavam os grotões em moradores de uma via asfaltada e arborizada, em permanente rixa com os vizinhos.
Por que tais filmes são tão raros no Brasil? Desde 2003, muitos críticos já apontaram a superioridade do cinema argentino em relação ao nosso, atribuindo o fato a deficiências dos diretores locais, supostamente presos a temáticas repetitivas e propensos a realizar obras esquemáticas e moralistas.
Explicações assim, porém, dissociam o sujeito do objeto, desconsiderando o fato de que os cineastas não estão diante do mundo que buscam compreender, mas dentro dele. Por que uma nação não consegue conhecer a si mesma?
A razão desse subdesenvolvimento artístico encontra-se no próprio "O Som ao Redor". O filme mostra como as mudanças no Brasil se processam vagarosamente, por meio de deslizamentos sutis na hierarquia social --como a transformação do velho senhor de engenho em um especulador de imóveis urbanos, e a conversão de camponeses em guardas noturnos.
FATALISMO
Como observou o filósofo Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), essa estagnação social difunde na intelectualidade uma visão de mundo fatalista, pois a história se apresenta como obra do destino. Pouquíssimos artistas chegam a entender os países que adotam essa política de conciliação com o atraso, porque o presente está sempre encoberto pelo passado. E, como as obras de arte só aparecem aí de forma esporádica, tais nações não conseguem criar uma tradição artística orgânica.
Em contraste, cineastas de países sacudidos por crises traumáticas têm diante de si uma matéria-prima muito diversa. Nesses momentos as estruturas do antigo regime são demolidas velozmente, e os alicerces do novo mundo são percebidos com nitidez. Não é por acaso que fortes impulsos de renovação do cinema surgiram após guerras mundiais (Alemanha, Itália, Japão), revoluções (Rússia, Irã) ou fiascos coloniais (França). Sem o colapso de 2001, dificilmente o cinema argentino seria o mesmo.
No Brasil, ao contrário, as mudanças não se processaram com rapidez nem com clareza. A partir do século 19, os escravos foram substituídos por assalariados que, embora formalmente livres, estavam submetidos ao poder pessoal do proprietário e constituíam sua principal base eleitoral. Mas não a única. O resto da população rural também dependia dos coronéis para ter acesso a serviços públicos.
Todo esse imenso subproletariado era conservador, pois sua privação material o predispunha a trocar seu voto por pequenos favores. Ao analisar o filme "Os Fuzis", de Ruy Guerra (1964), o crítico Roberto Schwarz já havia percebido esse fenômeno: "A massa dos miseráveis fermenta, mas não explode".
Esse vínculo secular só começou a se desfazer após a eleição de Lula em 2002, como mostrou André Singer em "Os Sentidos do Lulismo" (2012). As políticas de redução da pobreza possibilitaram a ruptura dos laços políticos entre os partidos conservadores e a população excluída. O grande mérito de "O Som ao Redor" foi tornar visível esse processo de decomposição. Talvez agora o caminho esteja livre para os novos cineastas.

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