domingo, 17 de fevereiro de 2013

O Mapa da Cultura - Isabel Coutinho

folha de são paulo

DIÁRIO DE LISBOA
O MAPA DA CULTURA
Conserva gourmet
Os portugueses, a crise e os enlatados
ISABEL COUTINHOOuvem-se passarinhos lá fora. A árvore em frente ao balneário público de Santo Estêvão está sem folhas, mas os pássaros chilreiam em despique com os pombos na janela de um prédio em ruínas.
A vizinha não está a ouvir fado aos berros nem tem a televisão ligada nos concursos e telenovelas. Alfama até parece um paraíso. Não fosse o título no jornal: "Lisboa amanheceu a cheirar mal e ninguém sabe porquê". E a notícia: "Partes da cidade amanheceram nesta terça-feira envoltas num intenso odor a ovos podres ou lixo, fruto da combinação da meteorologia e de uma fonte de poluição que até às 12h30 ninguém sabia dizer qual era".
Este é o ano em que deixámos de ter ilusões: vivemos num país ao som dos passarinhos, mas abre-se a janela e cheira a ovos podres.
No mês passado, os portugueses fizeram contas para saber quanto vão perder no ordenado por causa do aumento de impostos. Alguns tiveram ainda de decidir se querem receber metade dos subsídios de Natal e de férias parcelados ao longo do ano ou não. Para atenuar o choque. Chamam-lhe a "ilusão dos duodécimos" ("até parece que passamos a ganhar mais, mas é uma miragem" explicava a revista "Visão"). Seja como for a conclusão é simples: o salário encolheu.
A PALAVRA DO ANO
E vamos mudando hábitos. Cortando aqui e ali. Deixámos de assinar a SportTV -o canal que transmite vários jogos de futebol pela TV a cabo- e passamos a ir ver os jogos ao café. Deixámos de ir ao ginásio e descobrimos que a zona ribeirinha é perfeita para treinar. Passámos a levar o almoço para o trabalho, na marmita. A gasolina está cara e por isso nunca houve tanta gente a andar de bicicleta em Lisboa. Muitos passaram a fazer as compras on-line porque é mais fácil comparar preços e já ninguém liga às marcas. Aproveitam-se todos os cupões de desconto e já ninguém se sente acabrunhado por pedir ao empregado do restaurante para levar os restos para casa.
Uma palavra para resumir tudo isto? "Entroikado". Pelo menos foi assim que pensaram os portugueses que participaram numa votação organizada pela Porto Editora para a eleger a palavra que melhor representa o ano de 2012.
O adjectivo "entroikado", que segundo a entrada do dicionário da Porto Editora, tem o sentido de : "1) obrigado a viver sob as condições impostas pela troika (equipa constituída por responsáveis da Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional e que negociou as condições de resgate financeiro em Portugal); e 2) coloquial: que está numa situação difícil; tramado, lixado."
NA TERRA DA SARDINHA
Lembro-me de ouvir o escritor Miguel Real, que vive em Sintra, dizer que a partir do dia 16 de cada mês a câmara recolhe dos caixotes do lixo latas de conserva em catadupa. O dinheiro falta e as pessoas compram conservas porque é mais barato. Outrora comer conservas era "uma coisa de poupadinhos" mas mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
Em Lisboa, há agora restaurantes só de conservas. Podem até ser gourmet, como o Can the Can - Canned Food Goes Gourmet, na renovada praça do Comércio. Ou tradicionais, como o famoso bar de conservas Sol e Pesca, no Cais do Sodré, que teve direito a destaque no programa "No Reservations" de Anthony Bourdain em Lisboa. Veja o programa em bit.ly/Iybk02.
O chef quis encontrar-se com António Lobo Antunes e teve a ideia de o levar a uma casa de fados, a Tasca do Chico. Ninguém lhe disse que o escritor detestava fado porque lhe lembra o antigamente e nem ouvir Carminho o consegue fazer esquecer os tempos da ditadura, em que não havia futuro. Tempos que parecem estar cada vez menos longe.
MÚSICA COM LATA
Mas as conservas estão na moda. A loja da Conserveira de Lisboa, na rua dos Bacalhoeiros, na Baixa de Lisboa, teve a ideia de convidar 13 músicos portugueses para desenvolverem o design de uma lata de conserva à sua escolha.
O projecto chama-se "Música com Lata" e acontece até ao final do ano. Janeiro foi o mês da cantora de jazz Maria João (que escolheu recriar a lata do polvo fumado em azeite), este é o mês do fadista Camané, março será do guitarrista Norberto Lobo, abril, do rapper Chullage, maio, de Pedro Jóia, e junho, de Manuela Azevedo em dueto com Sérgio Godinho.
Na terceira terça-feira de cada mês, às 19h30, o músico lança a sua "lata" (em edição numerada e limitada de 500 latas) na Conserveira de Lisboa (conserveiradelisboa.pt). Haja música com lata e sobreviveremos.

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