Em No, filme de Pablo Larrain sobre o
plebiscito chileno de 1988, o uso de discurso vindo da publicidade
altera a relação dos cidadãos com a justiça e a política numa situação
de crise
Leca Kangussu
Estado de Minas: 02/03/2013
Obra de ficção, o filme No apresenta a
campanha do plebiscito, convocado devido a pressões internacionais,
realizado no Chile em 1988, por meio do qual Pinochet pretendia
conseguir o aval popular para continuar na presidência do país, onde já
estava havia 15 anos. A campanha pelo voto “no” é a grande estrela do
filme de Pablo Larrain, cujo roteiro foi extraído de El plebiscito, peça
inédita do escritor chileno (de origem croata) Antonio Skármeta, famoso
autor de O carteiro e o poeta. Formado em filosofia, na Universidade de
Columbia (New York), o autor fugiu do Chile depois do golpe militar, em
companhia do cineasta Raoul Ruiz, e exilou-se na Alemanha Ocidental
onde trabalhou como professor na Academia de Cinema e Televisão de
Berlim (DFFB).
A narrativa começa quando os remanescentes da
esquerda chilena no país solicitam a colaboração do jovem publicitário
René Saavedra (interpretado por Gael García Bernal) para a campanha em
favor do voto “no”, contando com o fato de ele ser filho de um exilado,
criado fora do país, alguém, portanto, cuja vida fora perigosamente
afetada pelo golpe de 11 de setembro de 1974, que assassinou o
presidente Salvador Allende, eleito democraticamente, e deu origem à
sangrenta ditadura de Pinochet.
Reticente e relutante, o
tranquilo publicitário aceita prestar assessoria aos defensores do voto
“no” e dispõe-se a assistir o material até então produzido para a
televisão. Este baseava-se na exibição da verdade dos fatos históricos e
mostrava os instrumentos que os produziram: violência, tortura,
assassinatos, condenação ao exílio ou à mudez de quem quer que
discordasse do regime ditatorial implantado à força – com ajuda
econômica e militar dos Estados Unidos. Tal apelo à justiça, à dor das
vítimas, à lembrança das vidas esmagadas não vai funcionar – julga o
pragmático publicitário, em coro com o filho de 9 anos e a empregada
doméstica: o primeiro nem presta atenção às imagens, a segunda afirma
preferir a estabilidade adquirida a não se sabe lá o quê.
Diante
disso, Saavedra propõe a criação de uma campanha publicitária cuja
mercadoria a ser vendida é o voto “no”. Ao contrário da ideia então em
curso de aproveitar o espaço concedido na mídia para apresentar alguma
verdade da perversa história e trazer à tona uma parte dos horrores
perpetrados pela ditadura militar e orquestrados pela CIA (ideia que os
próprios defensores consideravam condenada ao fracasso, isto é, que o
voto “si” iria ganhar), sua proposta visa, antes de tudo, vencer o
plebiscito, independentemente da consistência das imagens que levassem à
vitória. Para isso, escolhe apresentar não o sofrimento do passado e
sim a alegria que viria depois da deposição do tirano. Quer dizer, na
campanha por ele proposta, o voto “no” vira uma espécie de refrigerante,
máquina de lavar, sabão em pó, chocolate, um produto como outro
qualquer, cuja escolha tornaria a vida de seu consumidor mais alegre e
feliz.
Se, num primeiro momento, a antiga esquerda fica chocada
com a aparente frivolidade da proposta, na sequência, com raras
exceções, será por ela seduzida: impossível resistir à leveza, graça,
humor das imagens que manipulam os conhecimentos de psicologia,
semiótica, gestalt e outros mais, relativos ao efeito que formas, cores e
sons provocam na psique – sobretudo quando esta manipulação é a favor
da verdade histórica. E aqui encontra-se a questão filosófica que o
filme levanta: vestida com as roupagens, ritmos, máscaras do pseudo, a
verdade ainda é verdadeira?
Armas do inimigo Na
ficção cinematográfica podemos ver trechos da campanha “verdadeira”.
“No” ganha o plebiscito que depõe Pinochet. A cidade vai às ruas
comemorar e o publicitário vai para casa com seu filho: sua vida
permanece a mesma, seu trabalho continua a ser o de glamourizar
mercadorias. Com a diferença de que o dono da agência, seu patrão, que
ameaçara demiti-lo se ele participasse da campanha pelo “no”, passa a
apresentá-lo, orgulhosamente, como o criador dessa propaganda vitoriosa.
A heróica posição do protagonista, ameaçado de demissão pelo
chefe e de vida – a sua e a do filho – pela polícia secreta do governo,
tem sido criticada por usar as armas do inimigo e a elas sucumbir.
Melhor teria sido, há quem julgue assim, perder o plebiscito e manter
uma postura radical em direção à verdade e ao esclarecimento. A ideia de
fundo neste julgamento é a de que, ao acenar com um futuro radiante
caso o “no” fosse vitorioso, a vitória foi alcançada por meio de uma
mentira e, com isso, manteve-se o status quo, já que não houve nenhuma
transformação radical nos corações e mentes – e, portanto, tampouco na
história efetiva.
Contra essa ideia, vale lembrar que, ainda que
a justiça não tenha sido totalmente realizada, não se deve minimizar a
deposição de Pinochet pela vontade popular (mesmo que instrumentalmente
induzida), nem o fato de que isso mudou a vida dos perseguidos pelo
poder. Transformações parciais podem ser libertárias, mesmo quando não
realizam o ideal de uma mudança completa – muitas vezes impossível no
momento. Absolutizar uma situação abstrata sem dúvida mais desejável, ao
preço de desconsiderar o ganho efetivamente conseguido, pode configurar
uma forma de dogmatismo.
A atitude de René Saavedra – a de
adotar a linguagem do inimigo para vencê-lo – foi a de um jogador capaz
de truques a fim de conseguir o desejado. Em vez de apostar na razão, no
teor moral, nos sentimentos mais elevados da raça humana, o recurso foi
à paixão, à capacidade de sedução através de truques que já se
revelaram como eficazes.
Claro que esses truques apelam ao que
Platão denominava como as partes inferiores da psykhé – quando condenou o
estímulo destas, provocado pela potência de afecção sensível da poesia e
de outras artes miméticas, na República. Entretanto, é bom lembrar que o
próprio Platão abusa dos charmes e encantos da mímesis para apresentar
suas reflexões: como se sabe, o que pode ser chamado de filosofia
platônica nos é apresentado na forma de diálogos ficcionais.
Sem
pretender fechar a questão, o que considero mais interessante no filme é
o contraste entre a campanha do “no”, cujo eixo foi a promessa de
alegria, e a do “si”, baseada na ênfase do progresso econômico, da
produtividade material, da manutenção dos valores “tradicionais”. O
efeito estético da primeira é contagiante; o da segunda é constrangedor.
Em suma, mesmo usando clichês, chavões, procedimentos habituais da
indústria cultural e da sociedade do espetáculo, “no” entusiasma pela
alegria prometida por uma transformação política.
Tortura e humilhação
Se por um lado No parece um mero divertissement diante do magnífico
documentário de Patrício Guzmán, A batalha do Chile (1979), por outro
lado salta aos olhos seu poder de fogo se comparado a outro filme
recente, relativo a outro 11 de setembro, a película norte-americana A
hora mais escura (no original Zero dark thirty, que no jargão militar
significa meia-noite e meia). Apregoando apresentar “a maior caçada
humana da história”, este filme mostra cruamente o trabalho de tortura
sistemática infligida aos membros capturados da Al Quaeda para descobrir
o esconderijo de Bin Laden.
A finalidade da obra parece ser a
de criar uma narrativa para justificar a tortura. O problema
apresenta-se sob a seguinte forma: é lícito torturar alguns quando o
objetivo é salvar milhares de vidas (os 3 mil mortos no ataque ao World
Trade Center são um número recorrente na obra)? Se a resposta negativa
pode parecer irresponsável, a positiva cria uma situação ainda mais
grave, na medida em que torturar rebaixa o torturador e todos os seres
humanos, colocados com esse ato na posição de “torturáveis”. Humilha e
degrada a humanidade como um todo.
Assim, diante desses 11 de
setembro, em vez de adotar o dito popular “olho por olho, dente por
dente”, consideramos mais racional a posição poética do letrista Nick
Cave que, na música Mercy seat, substitui o dito – em inglês, “an eye
for an eye,a tooth for a tooth” – por uma rima ainda mais rica, “a lie
for a lie, a truth for a truth”, “uma mentira por uma mentira, uma
verdade por uma verdade”.
Leca Kangussu é professora da Universidade Federal de Ouro Preto.
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