sábado, 2 de março de 2013

Loucas por erotismo - Inez Lemos‏

Sucesso de livros que apelam para a pornografia vulgar evidenciam a posição masoquista das mulheres numa sociedade que não permite a livre expressão da sexualidade feminina 


Inez Lemos


Estado de Minas: 02/03/2013 

O extraordinário sucesso da série de novelas Cinquenta tons de cinza, o “pornô das mamães”, nos remete a fantasias arcaicas – dimensões sadomasoquistas que habitam cada um de nós. Nesse particular, interessa refletir o que subjaz à fissura das mulheres pelo romance de Érika Leonard James. Como explicar o interesse pelo jogo de poder e submissão que domina a trama? Ao explorar o masoquismo feminino nas relações afetivas, acredito que a autora encontrou o ponto, o fio da meada. O que ela precisava para prender a atenção das mulheres – donas de casa entediadas com a mesmice de suas relações sexuais. Interessa investigar os motivos do sucesso de um romance vulgar e excessiva pobreza simbólica.

Freud, em 1920, ao lançar a nova teoria das pulsões, inaugurou o conceito de pulsão de morte situado além do princípio do prazer. Significa que somos dominados por uma pulsão, que leva a nos oferecer ao sacrifício, na busca do prazer. Há uma dimensão erótica no sofrimento. A pulsão de morte, quando não tratada e controlada, pode dominar o funcionamento psíquico. Equivale dizer que somos um misto de contradições, sentimentos paradoxais. Quando esses interferem em nosso cotidiano, devemos investigá-los – buscar ajuda, desconfiar de nossa saúde psíquica.

Pulsão de morte é gozo – prazer e desprazer. E, por ser da ordem do inconsciente, se expressa de diversas maneiras, como: se deliciar com acidentes nas estradas, comer excessivamente, se drogar, cultuar neuroses. Nem sempre procuramos o melhor para nós, tampouco para aqueles que julgamos amar. Na cama, há homens que não se interessam pelo prazer da companheira, resistem a debruçar sobre seu corpo, prepará-lo para o prazer. Há algo de sadomasoquismo nos casais – seja homem ou mulher. Muitos acabam se submetendo aos caprichos de parceiros ardilosos – tornam escravos de relações perversas. Há muito de sofrimento nas famílias, que se unem em pactos mortíferos, cultuando a dor.

O que a mulher deseja é se sentir nas nuvens. Ela anseia por situações que a eleve e a faça se sentir únicas, reconhecida em sua feminilidade. Um parceiro que lhe garanta um lugar em seu desejo, tornando-as imprescindíveis. O imaginário feminino foi construído com representações de inferioridade. Crescemos na ilusão de que somos seres incompletos, uma vez que não portamos o representante fálico. Sem uma elaboração refinada, sem rever aspectos de sua sexualidade, a mulher pode se entregar, com facilidade, ao sofrimento. Posição que, muitas vezes, a coloca refém de homens bruscos. Mendigas do amor – aceitam situações desrespeitosas e humilhantes em troca de migalhas. Contudo, a mulher anseia ser nomeada por um homem, conferir que ele necessita de seu corpo, seu beijo e sua companhia. De que há algo nela que o faz urrar de prazer.

Como manter a chama da sedução em um cotidiano pouco excitante? Poucos casais conseguem driblar. O erotismo caminha por ruas floridas, ruas distantes da rotina. Para confrontá-lo, devemos romper o automatismo. Vida mecânica, gestos petrificados – eis o roteiro ideal para um texto afetivo broxante. A psicanalista Viviane Mosé, em O homem que sabe, nos inspira, de forma honesta, a romper com o tédio – falta de vigor e entusiasmo na vida: “A humanidade, que conquistamos com tanto investimento, tende a nos transformar em autômatos. É o vigor, o excesso, o desequilíbrio que nos protege desta robotização; a alegria, a dança, a sexualidade, o erotismo interferem nos gestos e se impõem, desmontando a seriedade e a sisudez, trazendo vida, intensidade, força”.

Como afastar o sexo da dimensão biológica e enlaçá-lo em dança erótica – epifania que promete júbilo? Como nos extasiar na cama sem perdermos a dignidade? Como privilegiar o corpo erótico, recusando práticas que visem apenas instrumentalizá-lo? Como resistir ao mundo estruturado no saber técnico, longe das intermitências do coração? Ao sermos pautados pela tecnologia, perdemos a substância e nos submetemos aos comandos externos. Dessubstancializados, vulneráveis, nos tornamos presas fáceis. Ao sermos extraídos da condição humana, ao abandonarmos a concha primordial – marcas que nos identificam e nos tornam únicos – deixamos de ser gente para nos tornar objetos. Seres ocos, corpos vazios. A tecnociência, na ânsia de dominar o mundo dos negócios, cooptou a alma humana, o sagrado; essência e tempero que move corações. Mistério que não pode ser violado.

Tocar estrelas O erotismo está no vínculo com o outro, quando as substâncias de um se misturam com a do outro. Se não conferimos sentido ao outro, se não imprimimos algo nosso na vida do parceiro, vivemos suspensos, destituídos da própria pele. A alegria de se fazer mulher, de plantar no outro o desejo de continuidade, pertence ao campo da conquista. Para tocar estrelas – um pedacinho do céu – devemos suar a camisa. O amor exige mais que algemas e chicotinhos. Exige viagens pelas ruínas, sabedoria ao vasculhar entranhas, teias de contradições.

Laços, afetos. Queremos causar sensações, emoções, mas não queremos nos jogar em planícies desconhecidas, vales íngremes. O erotismo nos enreda, questiona nossa determinação em assumirmos o desejo nas relações afetivas e sexuais. Até que ponto estamos contaminados por escolhas que não nos dizem respeito, que escapam às fantasias primordiais? Se pensamos e desejamos segundo um outro, se vivemos numa sociedade comandada por interesses de mercado, quem define com quem e como vamos para a cama? Espero que não sejam os best-sellers.

A técnica esvazia as palavras, extrai seu sentido. No lugar coloca o sentido que a convém. Uma palavra sem sentido aponta para a razão moderna. À razão não interessa a verdade, ela não se funda na experiência. Quanto mais ela se distanciar do homem dialético, ontológico, melhor para o insano mundo do dinheiro. Tudo que ele deseja é capturar o homem em sua totalidade – alma e atavismos. E transformá-lo em agentes tecnificados, focados e absolutos. Em nome da ciência, muita loucura tem-se praticado nos consultórios médicos. Muitos absurdos são prescritos. Vivemos a banalização dos diagnósticos, a epidemia do Rivotril. Rotulados pelo discurso médico, que se apoia no saber-poder, o cidadão torna-se refém da psicofarmacologia. É quando o interesse financeiro manipula a razão e exclui do discurso o diferente, o que insiste acreditar nos comandos de dentro. A alegria delirante, escandalosa e exuberante de viver é a que ressalta aos olhos. Ex-ótica. Eros gosta do que excede, extrapola. O “exota” é aquele que está fora da ordem, recusa o ordinário.

O mundo dos afetos sofre as conseqüências da ciência engajada. A ela interessa patologizar os sentimentos que, outrora, faziam parte da vida humana, como tristeza, medo, ansiedade. Sob o manto dos transtornos, caminhamos de mãos dadas com a farmacologia. Como resgatar a lucidez, o saber de si? Estamos nos tornando loucos por sentido, loucos por autoexpressão. Poucos ousam sair da linha, questionar a medicina que se ocupa mais com a doença do que com a saúde. O revolucionário foi capturado pela ciência. Despertencido e destituído de sua filiação, perambula sem os fios que o conectava à sua verdade. Ávidos por produzir clientes cativos, os laboratórios comandam o mundo abstrato dos diagnósticos. Os doutores da pós-modernidade não se interessam pelo sujeito desejante, apenas pelo portador de patologias. Pathos – patologia, paixão.

Ao romper com o cotidiano massificado, a falta de criatividade nas relações, ao recusar a mesmice que cochila nas alcovas, Cinqüenta tons de cinza coloca em cena o erotismo banal – introduz movimento, promessa de felicidade. O romance, ao cultuar o masoquismo feminino, expõe fantasias arcaicas – algo que excede e que não serve para mais nada senão nos manter vivos. O que a ciência quer é eliminar tudo que esteja fora, desalinhado. Devemos ser pornô, mas na medida certa – como manda a literatura.

A liberdade requer integridade, percurso nas entranhas. O que fez Ana (personagem em questão) se submeter aos caprichos sádicos do senhor Grey? Hoje, dominamos técnicas, mas esquecemos que a vida se funda nos subterrâneos da subjetividade. Eros está em nossa capacidade de reinventarmos repertórios empolgantes. O fazer por conta própria, livre de modismos impostos por um outro poderoso, o que detém a chave eficaz da manipulação. Também na recusa de cárceres privados, confinamentos operados pelos novos sofistas, sedutores de almas desavisadas. Consumidores em potencial – seja de Rivotril, seja de promessas falsas de erotismo.



Inez Lemos é psicanalista. E-mail: mils@gold.com.br.

Nenhum comentário:

Postar um comentário