Sucesso de livros que apelam para a
pornografia vulgar evidenciam a posição masoquista das mulheres numa
sociedade que não permite a livre expressão da sexualidade feminina
Inez Lemos
Estado de Minas: 02/03/2013
O
extraordinário sucesso da série de novelas Cinquenta tons de cinza, o
“pornô das mamães”, nos remete a fantasias arcaicas – dimensões
sadomasoquistas que habitam cada um de nós. Nesse particular, interessa
refletir o que subjaz à fissura das mulheres pelo romance de Érika
Leonard James. Como explicar o interesse pelo jogo de poder e submissão
que domina a trama? Ao explorar o masoquismo feminino nas relações
afetivas, acredito que a autora encontrou o ponto, o fio da meada. O que
ela precisava para prender a atenção das mulheres – donas de casa
entediadas com a mesmice de suas relações sexuais. Interessa investigar
os motivos do sucesso de um romance vulgar e excessiva pobreza
simbólica.
Freud, em 1920, ao lançar a nova teoria das pulsões,
inaugurou o conceito de pulsão de morte situado além do princípio do
prazer. Significa que somos dominados por uma pulsão, que leva a nos
oferecer ao sacrifício, na busca do prazer. Há uma dimensão erótica no
sofrimento. A pulsão de morte, quando não tratada e controlada, pode
dominar o funcionamento psíquico. Equivale dizer que somos um misto de
contradições, sentimentos paradoxais. Quando esses interferem em nosso
cotidiano, devemos investigá-los – buscar ajuda, desconfiar de nossa
saúde psíquica.
Pulsão de morte é gozo – prazer e desprazer. E,
por ser da ordem do inconsciente, se expressa de diversas maneiras,
como: se deliciar com acidentes nas estradas, comer excessivamente, se
drogar, cultuar neuroses. Nem sempre procuramos o melhor para nós,
tampouco para aqueles que julgamos amar. Na cama, há homens que não se
interessam pelo prazer da companheira, resistem a debruçar sobre seu
corpo, prepará-lo para o prazer. Há algo de sadomasoquismo nos casais –
seja homem ou mulher. Muitos acabam se submetendo aos caprichos de
parceiros ardilosos – tornam escravos de relações perversas. Há muito de
sofrimento nas famílias, que se unem em pactos mortíferos, cultuando a
dor.
O que a mulher deseja é se sentir nas nuvens. Ela anseia
por situações que a eleve e a faça se sentir únicas, reconhecida em sua
feminilidade. Um parceiro que lhe garanta um lugar em seu desejo,
tornando-as imprescindíveis. O imaginário feminino foi construído com
representações de inferioridade. Crescemos na ilusão de que somos seres
incompletos, uma vez que não portamos o representante fálico. Sem uma
elaboração refinada, sem rever aspectos de sua sexualidade, a mulher
pode se entregar, com facilidade, ao sofrimento. Posição que, muitas
vezes, a coloca refém de homens bruscos. Mendigas do amor – aceitam
situações desrespeitosas e humilhantes em troca de migalhas. Contudo, a
mulher anseia ser nomeada por um homem, conferir que ele necessita de
seu corpo, seu beijo e sua companhia. De que há algo nela que o faz
urrar de prazer.
Como manter a chama da sedução em um cotidiano
pouco excitante? Poucos casais conseguem driblar. O erotismo caminha por
ruas floridas, ruas distantes da rotina. Para confrontá-lo, devemos
romper o automatismo. Vida mecânica, gestos petrificados – eis o roteiro
ideal para um texto afetivo broxante. A psicanalista Viviane Mosé, em O
homem que sabe, nos inspira, de forma honesta, a romper com o tédio –
falta de vigor e entusiasmo na vida: “A humanidade, que conquistamos com
tanto investimento, tende a nos transformar em autômatos. É o vigor, o
excesso, o desequilíbrio que nos protege desta robotização; a alegria, a
dança, a sexualidade, o erotismo interferem nos gestos e se impõem,
desmontando a seriedade e a sisudez, trazendo vida, intensidade, força”.
Como afastar o sexo da dimensão biológica e enlaçá-lo em dança
erótica – epifania que promete júbilo? Como nos extasiar na cama sem
perdermos a dignidade? Como privilegiar o corpo erótico, recusando
práticas que visem apenas instrumentalizá-lo? Como resistir ao mundo
estruturado no saber técnico, longe das intermitências do coração? Ao
sermos pautados pela tecnologia, perdemos a substância e nos submetemos
aos comandos externos. Dessubstancializados, vulneráveis, nos tornamos
presas fáceis. Ao sermos extraídos da condição humana, ao abandonarmos a
concha primordial – marcas que nos identificam e nos tornam únicos –
deixamos de ser gente para nos tornar objetos. Seres ocos, corpos
vazios. A tecnociência, na ânsia de dominar o mundo dos negócios,
cooptou a alma humana, o sagrado; essência e tempero que move corações.
Mistério que não pode ser violado.
Tocar estrelas
O erotismo está no vínculo com o outro, quando as substâncias de um se
misturam com a do outro. Se não conferimos sentido ao outro, se não
imprimimos algo nosso na vida do parceiro, vivemos suspensos,
destituídos da própria pele. A alegria de se fazer mulher, de plantar no
outro o desejo de continuidade, pertence ao campo da conquista. Para
tocar estrelas – um pedacinho do céu – devemos suar a camisa. O amor
exige mais que algemas e chicotinhos. Exige viagens pelas ruínas,
sabedoria ao vasculhar entranhas, teias de contradições.
Laços,
afetos. Queremos causar sensações, emoções, mas não queremos nos jogar
em planícies desconhecidas, vales íngremes. O erotismo nos enreda,
questiona nossa determinação em assumirmos o desejo nas relações
afetivas e sexuais. Até que ponto estamos contaminados por escolhas que
não nos dizem respeito, que escapam às fantasias primordiais? Se
pensamos e desejamos segundo um outro, se vivemos numa sociedade
comandada por interesses de mercado, quem define com quem e como vamos
para a cama? Espero que não sejam os best-sellers.
A técnica
esvazia as palavras, extrai seu sentido. No lugar coloca o sentido que a
convém. Uma palavra sem sentido aponta para a razão moderna. À razão
não interessa a verdade, ela não se funda na experiência. Quanto mais
ela se distanciar do homem dialético, ontológico, melhor para o insano
mundo do dinheiro. Tudo que ele deseja é capturar o homem em sua
totalidade – alma e atavismos. E transformá-lo em agentes tecnificados,
focados e absolutos. Em nome da ciência, muita loucura tem-se praticado
nos consultórios médicos. Muitos absurdos são prescritos. Vivemos a
banalização dos diagnósticos, a epidemia do Rivotril. Rotulados pelo
discurso médico, que se apoia no saber-poder, o cidadão torna-se refém
da psicofarmacologia. É quando o interesse financeiro manipula a razão e
exclui do discurso o diferente, o que insiste acreditar nos comandos de
dentro. A alegria delirante, escandalosa e exuberante de viver é a que
ressalta aos olhos. Ex-ótica. Eros gosta do que excede, extrapola. O
“exota” é aquele que está fora da ordem, recusa o ordinário.
O
mundo dos afetos sofre as conseqüências da ciência engajada. A ela
interessa patologizar os sentimentos que, outrora, faziam parte da vida
humana, como tristeza, medo, ansiedade. Sob o manto dos transtornos,
caminhamos de mãos dadas com a farmacologia. Como resgatar a lucidez, o
saber de si? Estamos nos tornando loucos por sentido, loucos por
autoexpressão. Poucos ousam sair da linha, questionar a medicina que se
ocupa mais com a doença do que com a saúde. O revolucionário foi
capturado pela ciência. Despertencido e destituído de sua filiação,
perambula sem os fios que o conectava à sua verdade. Ávidos por produzir
clientes cativos, os laboratórios comandam o mundo abstrato dos
diagnósticos. Os doutores da pós-modernidade não se interessam pelo
sujeito desejante, apenas pelo portador de patologias. Pathos –
patologia, paixão.
Ao romper com o cotidiano massificado, a
falta de criatividade nas relações, ao recusar a mesmice que cochila nas
alcovas, Cinqüenta tons de cinza coloca em cena o erotismo banal –
introduz movimento, promessa de felicidade. O romance, ao cultuar o
masoquismo feminino, expõe fantasias arcaicas – algo que excede e que
não serve para mais nada senão nos manter vivos. O que a ciência quer é
eliminar tudo que esteja fora, desalinhado. Devemos ser pornô, mas na
medida certa – como manda a literatura.
A liberdade requer
integridade, percurso nas entranhas. O que fez Ana (personagem em
questão) se submeter aos caprichos sádicos do senhor Grey? Hoje,
dominamos técnicas, mas esquecemos que a vida se funda nos subterrâneos
da subjetividade. Eros está em nossa capacidade de reinventarmos
repertórios empolgantes. O fazer por conta própria, livre de modismos
impostos por um outro poderoso, o que detém a chave eficaz da
manipulação. Também na recusa de cárceres privados, confinamentos
operados pelos novos sofistas, sedutores de almas desavisadas.
Consumidores em potencial – seja de Rivotril, seja de promessas falsas
de erotismo.
Inez Lemos é psicanalista. E-mail: mils@gold.com.br.
Nenhum comentário:
Postar um comentário