Publicado há 50 anos, Brasil em movimento
é retrato do país dos anos 1940 a 1960, pelo olhar atento do romancista
americano, autor de Manhattan transfer. A política é o tema principal
João Paulo
Publicação: 02/03/2013 04:00
O
romancista norte-americano John dos Passos (1896-1970) chegou a ser
considerado por Jean-Paul Sartre “o maior escritor do nosso tempo”. E
que tempo. Contemporâneo dos existencialistas e dos autores que
renovaram a literatura ocidental na primeira metade do século passado,
Dos Passos (como o nome indica, ele era neto de portugueses da Ilha da
Madeira que migraram para os EUA no século 19), como Hemingway e Scott
Fitzgerald, fez parte da chamada geração perdida, da época em que Paris
era uma festa e a política libertária dava a cor vermelha dos dias que
então corriam.
Como romancista, John dos Passos deixou um
conjunto de obras-primas, no qual, com técnica experimental, fez o
retrato de seu país. Além de Manhattan transfer, feito de fragmentos que
mesclam ficção, reportagem, canções, poemas e outras vozes, foi autor
da trilogia USA, formada pelos romances Paralelo 42, 1919 e O grande
capital. A Editora Benvirá, que relançou recentemente a trilogia e se
prepara para a publicação de Manhattan transfer, revela agora um lado
menos conhecido do leitor brasileiro: o jornalista.
Brasil em
movimento foi publicado em 1963 nos Estados Unidos, reunindo narrativas
que resultaram de três visitas do escritor ao Brasil, em 1948, 1968 e
1962. Dos Passos publicou parte do material em reportagens para a
revista Life, que era o modelo de jornalismo literário da época. Em oito
capítulos, o livro é um painel amplo, quase um documentário narrado em
primeira pessoa, marcado pelo senso de observação e linguagem objetiva,
sem perder a perspicácia dos julgamentos sobre pessoas e elementos da
cultura brasileira do período.
Para entender um pouco as
simpatias e idiossincrasias de John dos Passos é bom lembrar que o
esquerdista que apoiou os revolucionários na Espanha e chegou a ser
preso pela ligação com publicações como a revista The Masses (sobretudo
em razão da defesa da inocência dos anarquistas Sacco e Vanzetti), aos
poucos foi mudando de lado. Era um momento em que todo mundo tinha lado.
Dos Passos, em polêmica com Hemingway, se firmou contra posturas contra
a liberdade assumidas durante a Guerra Civil Espanhola. Para ele, os
fins não justificavam os meios. O rompimento jogou o escritor para a
direita, o que explica alguns de seus enfoques sobre a política no
Brasil.
John dos Passos não falava português, mas entendia o
idioma, o que permite observações que fogem ao convencional da pesquisa
ou das respostas protocolares dos tradutores de suas entrevistas. Além
disso, tinha uma nítida simpatia pelo povo brasileiro, de certa forma
populista, meio folclórica, mas sincera. Ele apreciava as pessoas
simples e certamente gostaria que elas se mantivessem assim para sempre.
Invertendo a tradicional piada sobre a generosidade da natureza e a
falta de qualidade da gente brasileira, afirma: “O principal patrimônio
do Brasil são os brasileiros”. Para provar que acredita no que escreve,
no mesmo parágrafo reconhece que Santos Dumont, ao lado dos irmãos
Wright, foi responsável pelo desenvolvimento do transporte aéreo, o que
não é comum entre americanos.
O livro se divide em oito
capítulos, que vão de uma síntese da colonização portuguesa à política
do começo dos anos 1960. Entre as boas características dos brasileiros,
desde os primeiros séculos da presença portuguesa, ele destaca a
tendência à conciliação, à tolerância racial e religiosa e às transições
pacíficas: “O Brasil é um país de oratória tempestuosa, mas o latido
dos políticos em geral tem se tornado mais forte que a mordida”. Fala
com prazer da incorporação dos indígenas à cultura (lembrando o caso do
marechal Rondon), mas passa por cima da ferida da escravidão e da
violência e preconceito com os negros, louvando uma tendência à
miscigenação, na linha da democracia racial de Freyre, ainda que sem
nomear a situação dessa maneira.
Depois da abertura histórica sem
novidades e com forte carga ideológica, o livro parte para a matéria de
reportagem. E melhora muito, ainda que sem perder o foco político. O
anticomunismo se mostra a todo momento. Dos Passos resume a esquerda
brasileira à defesa projetos sem consistência, ao populismo e ao
antiamericanismo radical. Trata de forma equivocada em termos históricos
personagens como Brizola, Prestes, João Goulart e Francisco Julião e
demonstra uma simpatia indisfarçável por Carlos Lacerda, talvez a figura
principal do livro, de quem repercute a fama de “o mais perigoso homem
do Brasil”.
Perfis Brasil
em movimento, como o nome indica, é atento às transformações do país.
Por isso, ainda que as partes ligadas aos personagens políticos sejam as
mais vibrantes, trata também de aspectos relacionados aos grandes
projetos políticos e administrativos, que eram construídos sobre o vazio
de uma nação sem estradas e sem privadas. Há um capítulo sobre a
questão da saúde pública, sobre projetos de colonização no Sul e no
Norte, e o mais interessante deles cobre a construção de Brasília. O
repórter assume a frente do texto (deixando o ideólogo de lado) e conta a
história da construção da nova capital a partir de seus atores: Israel
Pinheiro, Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. São perfis
atentos a detalhes, perspicazes, que enfrentam o senso comum do período
e os inimigos políticos do projeto para destacar as qualidades humanas
dos personagens, considerados, no julgamento de Israel, “uns loucos”.
Dos
Passos parece entender bem o estilo mineiro de Israel Pinheiro (aliás,
as cidades mineiras ocupam sempre bom espaço nas reportagens, de
Conselheiro Lafaiete a Governador Valadares, passando por Belo
Horizonte) em seu contato com os operários e colaboradores. Ouve na voz
de Niemeyer (um comunista que considera “desconcertantemente ingênuo”) o
timbre que vem diretamente do coração. John dos Passos passa em revista
os argumentos contra o arquiteto, como o fato de se ligar muito à
estética e perder em funcionalidade (como se vê, a burrice e miopia dos
críticos não é de hoje) e, em seguida, depois da cidade pronta, avalia
com independência os bons e maus resultados que vê nos prédios do
arquiteto. Percebe ainda o poder socrático de Lúcio Costa frente à nova
geração de arquitetos, amparado por sua extrema modéstia.
Sobretudo,
se deixa seduzir por JK, mas flagra nele a tendência discursiva do
político em campanha 24 horas por dia, mesmo em momentos íntimos, numa
cena narrada com mão de romancista. Com argúcia, parece perceber o que
poucos, até os amigos não identificavam em JK: havia um homem enérgico e
determinado por trás do hábil negociador capaz de compor até com os
adversários.
Entre todos os perfis, sem dúvida o mais amplo e
simpático se dirige a Carlos Lacerda. O escritor conheceu o jornalista
brasileiro ainda em Washington e desde o primeiro encontro achou-o
“notavelmente bonito”. Mas é o personagem político, mais que a figura
humana, que o atrai: o anticomunismo, a tendência à polêmica, os
discursos inflamados e infindáveis, a moralização que cobrava para a
administração pública (de acordo com o escritor, Lacerda era o único
político a barrar a tendência atávica ao nepotismo), o combate à
ditadura Vargas, o “cão de guarda da democracia”.
O último
capítulo do livro, “O Nordeste desconfortável”, abandona a centralidade
da política nacional para se concentrar em aspectos da cultura da
região, narrando encontro com Gilberto Freyre (com elogios ao almoço
servido em Apipucos) e com políticos locais. John dos Passos se encanta
com as paisagens de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, com as
praias, as frutas, os ventos e a vegetação, mas mantém firme sua atenção
na ausência de estradas e outras conquistas mínimas da civilização.
Mesmo nessa hora, o escritor não abandona suas prédicas anticomunistas e
a necessidade de incentivar a contrapropaganda.
John dos Passos
termina seu livro caindo no sono depois de uma série de comícios pelo
interior do Nordeste. O repórter-escritor-ensaísta se revelou incansável
durante o livro. Mas ninguém é de ferro
O BRASIL EM MOVIMENTO
• De John dos Passos
• Editora Benvirá, 288 páginas, R$ 39,90
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