Caixa de ódio
Quando o momento pede revolta, somos silêncio; quando pede luto, somos barulho e confusão
Amigo torcedor, amigo secador, o que era uma caixinha de surpresa, como na definição antiga para o futebol, virou caixa de ódio -aqui me aproprio da imagem de Lupicínio Rodrigues. Caixa de ódio, na letra de sua música homônima, representa o peito de um homem ferido e com sede de violência.
Troque a dor de amor pelo fanatismo clubístico e teremos a mesma caixa de ódio, que aliás virou título de um show, lindamente dramático, que o Arrigo Barnabé fez. Um concerto com as canções de Lupicínio, este gênio gaúcho que, além de ser o rei da dor de cotovelo, escreveu os mais bonitos versos de um hino: o "até a pé nós iremos" do Grêmio.
Uma caixa de ódio com ressonância e barulheira até quando o assunto pede um paradoxal minuto de silêncio permanente pela morte na Bolívia. Nunca vi tanta ira em um debate, no mundo real das esquinas ou nas redes sociais, como na discussão sobre o episódio do sinalizador lançado da torcida corintiana aos donos da casa em Oruro.
É a torcida adversária chamando corintiano de assassino, é corintiano devolvendo com o mesmo sangue nos olhos. Nem para reflexão o momento infame serviu. Na transmissão, nos estúdios da Globo em SP, do Corinthians 2x0 Millonarios, o primeiro de portões semiabertos, o Vampeta, um tirador de onda contumaz, falou sério por um segundo. Questionado sobre se acreditava na melhoria do cenário de violência, sapecou, com sinceridade: "Não!".
Seu ceticismo faz sentido. Quando o momento pede revolta, somos silêncio; quando pede luto e respeito, somos barulho, confusão e correria. Parece um retrato mal-acabado de como somos brasileiros hoje.
Isso me lembra uma frase do espanhol Miguel Askargota, técnico da Bolívia na Copa-94: "Joga-se como se vive". Pesquei o mantra em um livro fundamental sobre futebol: "A dança dos deuses", do professor Hilário Franco Júnior. Joga-se como se vive e organiza-se o esporte ainda de forma mais atrasada.
O Brasil consegue ter uma cúpula da CBF pré-redemocratização do país. É a chamada vanguarda do atraso. No futebol, perdemos até para o estágio da classe da política profissional. Nem um Renan Calheiros temos ainda no poder da bola. Sinto muito.
E dane-se Copa. Meu mundo é hoje. Dane-se inclusive Libertadores da América. Só vale, mesmo já sendo um absurdo, o torneio da vida. Quer mata-mata mais louco?
Não importa o campeonato. Enquanto enterravam Kevin, 14, em Cochabamba, outro jovem ressuscitava, ainda lentamente, no Recife, Lucas Lyra, 19, alvejado na porta dos Aflitos. Só queria também ver o seu time, o Náutico, jogar contra o Central, no que um segurança de um ônibus com torcedores do Sport, diante de um começo de confusão, cometeu o disparo. Que Lucas continue vivo, que se mantenha o respeito e o silêncio por Kevin.
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