Estado de Minas: 02/03/2013
Quase na mesma
proporção em que os defensores das tecnologias de comunicação digital
ressaltam os benefícios do virtual na vida contemporânea, há quem
prefira nem discutir as vantagens ou prejuízos do passado em relação ao
presente. No alto de seus 83 anos, poderíamos supor que o filósofo
francês Michel Serres se filiasse a segunda turma, dos veteranos. Porém,
a questão é que idade, definitivamente, não vem ao caso neste momento.
Ainda bem.
No livro mais recente lançado no Brasil, Polegarzinha o dono de uma das cadeiras da Academia Francesa, formado em matemática, reconhecido historicamente pela carreira na epistemologia, mas que nunca se distanciou do princípio básico da filosofia, convida o leitor a pensar junto as transformações pelas quais temos passado nas últimas décadas. Mudanças essas que afetam a forma como lidamos com os outros, com a individualidade, com o trabalho, com os coletivos, com as instituições, com o saber, com o poder. São essas as instâncias que não escapam ao olhar de Serres.
A princípio, o autor pode soar até ousado para os leitores conservadores. Afinal, o acadêmico pondera sobre a ideia do nascimento de um “novo ser humano” a partir dos anos 1970. Exagero? Ele prova que não e ainda lança críticas a seus pares. “Eu acusaria os filósofos, entre os quais me incluo, gente que tem como vocação antecipar o saber e as práticas futuras e que, tenho a impressão, falhou nesse ponto. Presos cotidianamente à política, eles não perceberam o contemporâneo se aproximar”, ressalta.
O título do livro, Polegarzinha, é o nome que dá aos representantes da geração de dedos inquietos em teclados e telas. É a partir da perspectiva sobre o que eles já fazem e da maneira como lidam com o caos da informação que o autor sustenta a ideia sobre o surgimento do sujeito diferente. “Eles não têm o mesmo corpo, a mesma expectativa de vida, não se comunicam mais da mesma maneira, não percebem mais o mesmo mundo, não vivem mais na mesma natureza, não habitam mais o mesmo espaço", distingue.
Como professor, Michel Serres parte de seu ofício para introduzir a própria inquietação em descobrir uma maneira diferente de lidar com as transformações. Dividido em três partes, Polegarzinha primeiro apresenta uma espécie de estado da arte do que ele pretende falar, ou seja, a atenta observação do autor sobre as “crianças” que habitam o virtual, “por celular têm acesso a todas as pessoas; por GPS a todos os lugares; por internet, a todo saber”.
Boas perguntas
Feito isso, o filósofo inicia uma série de perguntas que se repetem ao longo dos capítulos dedicados aos desafios da escola e da sociedade. O que transmitir? A quem? Como? Para acompanhar o homem que já mudou, Michel Serres reflete sobre a necessidade de uma reciclagem urgente no ensino, no trabalho, nas empresas, na saúde, no direito, na política, enfim, nas engrenagens sociais. Para retratar a lógica da Polegarzinha, ele lança mão de ideias célebres, como a de Montaigne (defensor de “uma cabeça bem-construída a um saber acumulado”) e também de metáforas como o caso da Legenda Áurea.
Escrita por Jacques de Voragine, conta o milagre alcançado por Denis, bispo de Paris condenado à decapitação pelo imperador Domiciano. Diz a lenda que, por preguiça dos soldados que o encaminhavam ao alto do morro de Montmartre, teriam cortado a cabeça antes de chegar ao topo. Para a surpresa deles, o próprio Denis, milagrosamente, teria continuado a caminhada com a cabeça nas mãos. Foi canonizado.
Hoje, o computador ou qualquer dispositivo móvel conectado às redes está para Polegarzinha assim como a cabeça estava para São Denis: nas mãos e não no corpo. “Ultimamente todos nos tornamos são Denis. Nossa inteligência saiu da cabeça ossuda e neuronal. Entre nossas mãos, a caixa-computador contém e põe de fato em funcionamento o que antigamente chamávamos nossas “faculdades”: uma memória mil vezes mais poderosa do que a nossa; uma imaginação equipada com milhões de ícones; um raciocínio, também, já que programas podem resolver 100 problemas que não resolveríamos sozinhos”.
Polegarzinha, o livro, é fruto do discurso de Michel Serres na Academia Francesa, em janeiro de 2012. A medida em que compartilha sua observação atenta, o autor não deixa de considerar os feitos do passado e as experiências acumuladas. As consequências que as transformações trazem são, antes de mais nada, questões como: “Estamos condenados à inteligência?”, “O que resta, então, acima dos pescoços cortados de São Denis de Paris e das crianças de hoje?”, “Será o fim da era dos especialistas?”. Há, no entanto, equilíbrio ao lidar com o novo.
Michel Serres é elegante. Ao se afastar do fatalismo comum nos discursos sobre tecnologia, incentiva o surgimento de uma forma diferente de lidar com polegarzinhas e polegarzinhos que não cessarão de mover seus dedos.
POLEGARZINHA
De Michel Serres, tradução de Jorge Bastos
Editora Bertrand Brasil, 96 páginas, R$ 24
No livro mais recente lançado no Brasil, Polegarzinha o dono de uma das cadeiras da Academia Francesa, formado em matemática, reconhecido historicamente pela carreira na epistemologia, mas que nunca se distanciou do princípio básico da filosofia, convida o leitor a pensar junto as transformações pelas quais temos passado nas últimas décadas. Mudanças essas que afetam a forma como lidamos com os outros, com a individualidade, com o trabalho, com os coletivos, com as instituições, com o saber, com o poder. São essas as instâncias que não escapam ao olhar de Serres.
A princípio, o autor pode soar até ousado para os leitores conservadores. Afinal, o acadêmico pondera sobre a ideia do nascimento de um “novo ser humano” a partir dos anos 1970. Exagero? Ele prova que não e ainda lança críticas a seus pares. “Eu acusaria os filósofos, entre os quais me incluo, gente que tem como vocação antecipar o saber e as práticas futuras e que, tenho a impressão, falhou nesse ponto. Presos cotidianamente à política, eles não perceberam o contemporâneo se aproximar”, ressalta.
O título do livro, Polegarzinha, é o nome que dá aos representantes da geração de dedos inquietos em teclados e telas. É a partir da perspectiva sobre o que eles já fazem e da maneira como lidam com o caos da informação que o autor sustenta a ideia sobre o surgimento do sujeito diferente. “Eles não têm o mesmo corpo, a mesma expectativa de vida, não se comunicam mais da mesma maneira, não percebem mais o mesmo mundo, não vivem mais na mesma natureza, não habitam mais o mesmo espaço", distingue.
Como professor, Michel Serres parte de seu ofício para introduzir a própria inquietação em descobrir uma maneira diferente de lidar com as transformações. Dividido em três partes, Polegarzinha primeiro apresenta uma espécie de estado da arte do que ele pretende falar, ou seja, a atenta observação do autor sobre as “crianças” que habitam o virtual, “por celular têm acesso a todas as pessoas; por GPS a todos os lugares; por internet, a todo saber”.
Boas perguntas
Feito isso, o filósofo inicia uma série de perguntas que se repetem ao longo dos capítulos dedicados aos desafios da escola e da sociedade. O que transmitir? A quem? Como? Para acompanhar o homem que já mudou, Michel Serres reflete sobre a necessidade de uma reciclagem urgente no ensino, no trabalho, nas empresas, na saúde, no direito, na política, enfim, nas engrenagens sociais. Para retratar a lógica da Polegarzinha, ele lança mão de ideias célebres, como a de Montaigne (defensor de “uma cabeça bem-construída a um saber acumulado”) e também de metáforas como o caso da Legenda Áurea.
Escrita por Jacques de Voragine, conta o milagre alcançado por Denis, bispo de Paris condenado à decapitação pelo imperador Domiciano. Diz a lenda que, por preguiça dos soldados que o encaminhavam ao alto do morro de Montmartre, teriam cortado a cabeça antes de chegar ao topo. Para a surpresa deles, o próprio Denis, milagrosamente, teria continuado a caminhada com a cabeça nas mãos. Foi canonizado.
Hoje, o computador ou qualquer dispositivo móvel conectado às redes está para Polegarzinha assim como a cabeça estava para São Denis: nas mãos e não no corpo. “Ultimamente todos nos tornamos são Denis. Nossa inteligência saiu da cabeça ossuda e neuronal. Entre nossas mãos, a caixa-computador contém e põe de fato em funcionamento o que antigamente chamávamos nossas “faculdades”: uma memória mil vezes mais poderosa do que a nossa; uma imaginação equipada com milhões de ícones; um raciocínio, também, já que programas podem resolver 100 problemas que não resolveríamos sozinhos”.
Polegarzinha, o livro, é fruto do discurso de Michel Serres na Academia Francesa, em janeiro de 2012. A medida em que compartilha sua observação atenta, o autor não deixa de considerar os feitos do passado e as experiências acumuladas. As consequências que as transformações trazem são, antes de mais nada, questões como: “Estamos condenados à inteligência?”, “O que resta, então, acima dos pescoços cortados de São Denis de Paris e das crianças de hoje?”, “Será o fim da era dos especialistas?”. Há, no entanto, equilíbrio ao lidar com o novo.
Michel Serres é elegante. Ao se afastar do fatalismo comum nos discursos sobre tecnologia, incentiva o surgimento de uma forma diferente de lidar com polegarzinhas e polegarzinhos que não cessarão de mover seus dedos.
POLEGARZINHA
De Michel Serres, tradução de Jorge Bastos
Editora Bertrand Brasil, 96 páginas, R$ 24
Nenhum comentário:
Postar um comentário