Livro retrata, em texto e imagens, a
história musical de São João del-Rei, Prados e Tiradentes. Qualidade da
arte da região supera a dicotomia entre popular e erudito
Ângela Faria
Estado de Minas: 02/03/2013
Estampada no Jornal do Brasil, a notícia
veio de Carlos Drummond de Andrade: o interior de Minas – desde o século
18! – abolira as classes sociais, antecipando o sonho soviético. A
utopia se concretizara por meio da música, revelava o poeta cronista, em
1977, maravilhado ao ouvir a Orquestra Ribeiro Bastos tocar. Operário,
dona de casa, estudante, bombeiro hidráulico, advogado, professor,
hoteleiro, funcionário público, alfaiate, escultor, costureira e
tipógrafo se esmeraram em executar peças sacras compostas nos séculos 18
e 19.
Nem utopia, muito menos milagre. O mágico momento
desfrutado por Drummond é fruto do empenho – por séculos a fio – da
gente perseverante dos Campos das Vertentes, na Região Central de Minas
Gerais. Esse mutirão cultural de quase 300 anos é tema do livro Uma
história de amor à música: São João del-Rei, Prados, Tiradentes (Editora
Bei), escrito pelos repórteres Marília Scalzo e Celso Nucci, com
fotografias de Eugênio Sávio.
Setenta entrevistas, anos de
pesquisa e 24 meses de apurada coleta de imagens retratam o
impressionante mosaico da cena cultural dessas três cidades. O livro não
trata apenas do patrimônio mineiro ou brasileiro, mas de um tesouro das
Américas. E derruba o mito de que o acesso à chamada “alta cultura”
está atrelado a iniciativas pedagógicas de gente “iluminada” e
bem-nascida, preocupada em catequizar o povão. Ali, música vem de casa –
seja ela pobre, remediada ou rica.
Bem avisa o dito popular:
“Festa sem padre, música e foguete não é festa”. E foi assim, por meio
das comemorações e cerimônias católicas, que tudo começou. Desde meados
do século 18, povoados das Vertentes garimparam artistas. Irmandades e
confrarias religiosas formaram e sustentaram instrumentistas e cantores.
Inicialmente, a mão de obra veio de Portugal, mas negros forros e
mulatos passaram logo a se dedicar ao ofício. Assim surgiram orquestras e
compositores especializados no repertório sacro.
O declínio do
Ciclo do Ouro afetou as orquestras e o ganha-pão de artistas
profissionais. Proliferaram, então, as bandas – menores e mais simples
de manter. Elas acompanhavam procissões, cerimônias e deram origem a
conjuntos de jazz e formações para bailes e festas. Também fomentaram a
cena lírica local.
Nunca foi fácil manter esse legado, mas ele
jamais se transformou no melancólico “retrato na parede” de Drummond.
Estão lá – bem atuantes, por sinal – as orquestras Lira Sanjoanense
(criada em 1776) e Ribeiro Bastos (1790), de São João del-Rei; Ramalho
(1860), de Tiradentes; e Lira Ceciliana (1858), de Prados. Na semana
santa, até hoje se executa uma preciosidade dos tempos coloniais, o
Ofício de trevas.
Se o Ciclo do Ouro acabou há tempos, o Ciclo
da Música se reinventa. O pesquisador Francisco Curt Lange, a partir dos
anos 1940, trouxe à luz o acervo desse precioso repertório. Alemão
naturalizado uruguaio, ele lutou para chamar a atenção do mundo (e
principalmente das autoridades brasileiras) para aquele tesouro, fruto
do talento de negros alforriados, dos filhos de portugueses com escravas
e dos mulatos.
Militantes da cultura
Marília
Scalzo e Celso Nucci explicam por que tamanha sinfonia já dura 300
anos. Nas 104 páginas do livro, compositores, músicos e cidadãos
militantes da cultura surgem aos borbotões. Resumindo: gente que fez,
faz e vai continuar fazendo. Do padre José Maria Xavier, aclamado
compositor do século 19, ao maestro Teófilo Inácio Rodrigues
(1889-1973), ferroviário aposentado que por 56 anos comandou a Banda de
Música Theodoro de Faria. No lugarejo de Rio das Mortes, Jéssica, de 12,
mantém a tradição: a clarinetista é a caçula da centenária Lira do
Oriente de Santa Cecília.
As mulheres, aliás, demoraram a
“invadir” a cena. Na Minas colonial, elas pouco saíam da cozinha. No
mundo pós-feminista, Maria Stella Neves Valle, de 84, filha do
bibliotecário Telêmaco Neves, ensaia instrumentistas e rege a Orquestra
Ribeiro Bastos, assim como fez o pai, tio de Tancredo Neves.
Ex-presidente da Banda Ramalho, a professora Anna Maria Parsons hoje
coordena o Cerem, fundação de referência musicológica encarregada de
pesquisar e manter o precioso acervo. Desde 1953, o Conservatório
Estadual Padre José Maria Xavier forma instrumentistas e cantores.
A
Rodrigo Leandro da Silva cabe a missão de “reger” o sino da Igreja do
Rosário, em São João del-Rei. A viola do padre José Maria Xavier,
falecido em 1887, ainda brilha nas mãos de José Justino Fernandes
durante concertos da Lira Sanjoanense. Ali tocava Geraldo Patusca, que
morreu em 2012, aos 96 anos. Filho de outro Geraldo – o Barbosa de
Souza, compositor e maestro da Lira Sanjoanense –, Marcelo Ramos regeu a
Orquestra Sinfônica de Minas Gerais por cinco anos, morou no exterior e
registrou o Ofício das trevas em CD. Antônio Carlos Guimarães,
estudante de flauta da Ribeiro Bastos, e seu colega, o violoncelista
Abel Moraes, formaram-se na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
especializaram-se no exterior e voltaram para implantar o Departamento
de Música da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), criado em
2006.
Nos Campos das Vertentes, as crianças adoram frequentar
escolinhas de futebol e aulas de música. Elas são a prova de que nada é
utópico na trajetória da orquestra que tanto emocionou Carlos Drummond
de Andrade. A coisa vem de berço. Simples assim.
UMA HISTÓRIA DE AMOR À MÚSICA:
SÃO JOÃO DEL-REI, PRADOS, TIRADENTES
Texto: Marília Scalzo e Celso Nucci
Fotos: Eugênio Sávio
Editora Bei, 290 páginas, R$ 80
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