sábado, 2 de março de 2013

Gente que faz - Ângela Faria‏

Livro retrata, em texto e imagens, a história musical de São João del-Rei, Prados e Tiradentes. Qualidade da arte da região supera a dicotomia entre popular e erudito 


Ângela Faria

Estado de Minas: 02/03/2013 

Estampada no Jornal do Brasil, a notícia veio de Carlos Drummond de Andrade: o interior de Minas – desde o século 18! – abolira as classes sociais, antecipando o sonho soviético. A utopia se concretizara por meio da música, revelava o poeta cronista, em 1977, maravilhado ao ouvir a Orquestra Ribeiro Bastos tocar. Operário, dona de casa, estudante, bombeiro hidráulico, advogado, professor, hoteleiro, funcionário público, alfaiate, escultor, costureira e tipógrafo se esmeraram em executar peças sacras compostas nos séculos 18 e 19.

Nem utopia, muito menos milagre. O mágico momento desfrutado por Drummond é fruto do empenho – por séculos a fio – da gente perseverante dos Campos das Vertentes, na Região Central de Minas Gerais. Esse mutirão cultural de quase 300 anos é tema do livro Uma história de amor à música: São João del-Rei, Prados, Tiradentes (Editora Bei), escrito pelos repórteres Marília Scalzo e Celso Nucci, com fotografias de Eugênio Sávio.

Setenta entrevistas, anos de pesquisa e 24 meses de apurada coleta de imagens retratam o impressionante mosaico da cena cultural dessas três cidades. O livro não trata apenas do patrimônio mineiro ou brasileiro, mas de um tesouro das Américas. E derruba o mito de que o acesso à chamada “alta cultura” está atrelado a iniciativas pedagógicas de gente “iluminada” e bem-nascida, preocupada em catequizar o povão. Ali, música vem de casa – seja ela pobre, remediada ou rica.

Bem avisa o dito popular: “Festa sem padre, música e foguete não é festa”. E foi assim, por meio das comemorações e cerimônias católicas, que tudo começou. Desde meados do século 18, povoados das Vertentes garimparam artistas. Irmandades e confrarias religiosas formaram e sustentaram instrumentistas e cantores. Inicialmente, a mão de obra veio de Portugal, mas negros forros e mulatos passaram logo a se dedicar ao ofício. Assim surgiram orquestras e compositores especializados no repertório sacro.

O declínio do Ciclo do Ouro afetou as orquestras e o ganha-pão de artistas profissionais. Proliferaram, então, as bandas – menores e mais simples de manter. Elas acompanhavam procissões, cerimônias e deram origem a conjuntos de jazz e formações para bailes e festas. Também fomentaram a cena lírica local.

Nunca foi fácil manter esse legado, mas ele jamais se transformou no melancólico “retrato na parede” de Drummond. Estão lá – bem atuantes, por sinal – as orquestras Lira Sanjoanense (criada em 1776) e Ribeiro Bastos (1790), de São João del-Rei; Ramalho (1860), de Tiradentes; e Lira Ceciliana (1858), de Prados. Na semana santa, até hoje se executa uma preciosidade dos tempos coloniais, o Ofício de trevas.

Se o Ciclo do Ouro acabou há tempos, o Ciclo da Música se reinventa. O pesquisador Francisco Curt Lange, a partir dos anos 1940, trouxe à luz o acervo desse precioso repertório. Alemão naturalizado uruguaio, ele lutou para chamar a atenção do mundo (e principalmente das autoridades brasileiras) para aquele tesouro, fruto do talento de negros alforriados, dos filhos de portugueses com escravas e dos mulatos.

Militantes da cultura
Marília Scalzo e Celso Nucci explicam por que tamanha sinfonia já dura 300 anos. Nas 104 páginas do livro, compositores, músicos e cidadãos militantes da cultura surgem aos borbotões. Resumindo: gente que fez, faz e vai continuar fazendo. Do padre José Maria Xavier, aclamado compositor do século 19, ao maestro Teófilo Inácio Rodrigues (1889-1973), ferroviário aposentado que por 56 anos comandou a Banda de Música Theodoro de Faria. No lugarejo de Rio das Mortes, Jéssica, de 12, mantém a tradição: a clarinetista é a caçula da centenária Lira do Oriente de Santa Cecília.

As mulheres, aliás, demoraram a “invadir” a cena. Na Minas colonial, elas pouco saíam da cozinha. No mundo pós-feminista, Maria Stella Neves Valle, de 84, filha do bibliotecário Telêmaco Neves, ensaia instrumentistas e rege a Orquestra Ribeiro Bastos, assim como fez o pai, tio de Tancredo Neves. Ex-presidente da Banda Ramalho, a professora Anna Maria Parsons hoje coordena o Cerem, fundação de referência musicológica encarregada de pesquisar e manter o precioso acervo. Desde 1953, o Conservatório Estadual Padre José Maria Xavier forma instrumentistas e cantores.

A Rodrigo Leandro da Silva cabe a missão de “reger” o sino da Igreja do Rosário, em São João del-Rei. A viola do padre José Maria Xavier, falecido em 1887, ainda brilha nas mãos de José Justino Fernandes durante concertos da Lira Sanjoanense. Ali tocava Geraldo Patusca, que morreu em 2012, aos 96 anos. Filho de outro Geraldo – o Barbosa de Souza, compositor e maestro da Lira Sanjoanense –, Marcelo Ramos regeu a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais por cinco anos, morou no exterior e registrou o Ofício das trevas em CD. Antônio Carlos Guimarães, estudante de flauta da Ribeiro Bastos, e seu colega, o violoncelista Abel Moraes, formaram-se na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especializaram-se no exterior e voltaram para implantar o Departamento de Música da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), criado em 2006.

Nos Campos das Vertentes, as crianças adoram frequentar escolinhas de futebol e aulas de música. Elas são a prova de que nada é utópico na trajetória da orquestra que tanto emocionou Carlos Drummond de Andrade. A coisa vem de berço. Simples assim.

UMA HISTÓRIA DE AMOR À MÚSICA:
SÃO JOÃO DEL-REI, PRADOS, TIRADENTES


Texto: Marília Scalzo e Celso Nucci
Fotos: Eugênio Sávio
Editora Bei, 290 páginas, R$ 80

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