folha de são paulo
Anand Giridharadas
Os americanos conservadores do século 21 dificilmente seriam confundidos com os entusiastas do "amor livre" do século 19.
Mas quando a Suprema Corte dos Estados Unidos ouviu recentemente os argumentos sobre o casamento de mesmo sexo, os oponentes conservadores desses casamentos lamentaram a disseminação de uma tendência que os antigos defensores do amor livre e alguns de seus contemporâneos radicais alertaram a respeito há mais de 150 anos.
Entre os argumentos dos conservadores na corte estava este: a redefinição do casamento. mas palavras do advogado Charles J. Cooper, "mudará o foco" da instituição "da criação de filhos para as necessidades e desejos emocionais dos adultos".
Esse espectro, de casamentos centrados na realização e não no dever, e nas necessidades de apenas dois e não de mais, era igualmente temido por muitos radicais no século 19. Alguns rotularam o fenômeno de "conjugalismo". Outros se referiam a ele como "egoísmo composto".
Em 1854, os defensores do amor livre Thomas Low Nichols e Mary Gove Nichols escreveram: "Um homem jovem, antes de cair no egoísmo da monogamia, ama e adora, e está pronto para proteger e defender, não uma mulher, mas todas as mulheres. Esse é o verdadeiro espírito do cavalheirismo e da glória; mas raramente dura muito após o casamento".
Marx Edgeworth Lazarus, um contemporâneo e defensor do amor livre, queixava-se do "casamento e do lar isolado". Não apenas o casamento era "o túmulo da espontaneidade", como também minava "a devoção humana", ao concentrar os casais excessivamente um no outro.
Andrew Jackson Davis, um popular hipnotista e escritor espiritual da época, igualmente se queixava de que "a cada dia nosso país está se tornando mais conjugal".
Os velhos anticonjugalistas e os novos chegaram às suas posições por caminhos diferentes. Os radicais do século 19 temiam casamentos como vórtice, afastando as pessoas de Deus e/ou da comunidade. Os conservadores modernos temem casamentos como vórtice afastando as pessoas de seus filhos, naturais ou adotivos –e da manutenção de lares estáveis para criá-los.
Mas os velhos e os novos críticos compartilham essas crenças entrelaçadas: a de que o casamento, frequentemente apresentado como a mais comunal das instituições, pode prejudicar as comunidades caso volte os casais apenas para si mesmos; que duas pessoas podem ser egoístas juntas tanto quanto uma pessoa pode ser egoísta sozinha; que falta algo quando um casal se dedica puramente um ao outro visando apenas saborear essa devoção.
Resumindo, eles compartilham a crença de que o casamento deveria servir aos outros e para algo, não ser buscado como um fim em si mesmo.
Muitos dos oponentes do casamento de mesmo sexo chegaram à sua posição por simples oposição à homossexualidade. Mas outros insistem que eles não desejam punir um grupo, mas sim lutar por uma campanha maior: a defesa da ideia do casamento como um meio, não um fim.
O "amicus curiae" (amigo da corte) apresentado em um dos dois casos de casamento de mesmo sexo cujos argumentos foram ouvidos no mês passado, da Associação Nacional dos Evangélicos e outros grupos religiosos, argumentou que seu principal temor era a reorientação do casamento em torno da "acomodação das opções de relacionamento dos adultos", em vez da aspiração de que "toda criança seja conhecida, amada e criada pelo pai e pela mãe que a trouxe ao mundo".
Os defensores do casamento de mesmo sexo argumentaram no tribunal que era injusto e inconstitucional impedir os casais gays de se casarem por esse motivo, quando muitos casais heterossexuais se casam puramente para atender suas próprias necessidades. "Negar aos gays e lésbicas o direito de se casarem não aumenta a probabilidade dos casais de sexo oposto, capazes de procriar, decidirem se casar", eles argumentaram. "A Constituição protege o direito de todos os indivíduos heterossexuais –incluindo os inférteis, os idosos e os presos– de se casarem, independente de sua capacidade ou desejo de procriar."
Os oponentes do casamento de mesmo sexo reconhecem que o casamento já está sendo redefinido na direção "conjugalista", independente do que acontecer com os gays. "Certamente, surgiu nos últimos anos um conceito de casamento que retira a ênfase da procriação responsável e dos interesses dos filhos em prol da realização pessoal e dos desejos dos adultos", escreveram em sua argumentação os oponentes do casamento de mesmo sexo. Afinal, um número sem precedente de crianças americanas nasce atualmente de mães não casadas, o número de divórcios continua alto e um grande número de casais heterossexuais opta por não ter filhos.
Diante desses fatos, é difícil culpar os gays de mudarem o foco do casamento. A posição mais comedida poderia ser que a permissão dos casamentos de mesmo sexo proclamaria na forma de lei uma mudança que há muito está entre nós, mas cuja prática espreitava nas sombras até agora.
"Ao redefinir o casamento, a lei ensinaria que o casamento trata-se fundamentalmente de uniões emocionais de adultos, não de uma união da carne ou de filhos", escreveram os acadêmicos Robert P. George, Sherif Girgis e Ryan T. Anderson em 2010, em um trabalho acadêmico citado em um dos casos. Eles acrescentaram: "As pessoas deixariam cada vez mais de ver os motivos intrínsecos para se casarem ou para permanecerem com um cônjuge na ausência de um sentimento consistentemente forte".
Ou talvez esse mundo já esteja sobre nós –ou esteja em preparação pelo menos desde que Romeu ignorou o que todos pensavam e apostou tudo em um amor que ele confessou ser "loucura temperada, fel ingrato, doçura refinada".
Tradutor: George El Khouri Andolfato
Nenhum comentário:
Postar um comentário