O modo 'piloto automático' rege nosso comportamento e quase todas as áreas da vida, reforça novo livro sobre os últimos estudos da neurociência
Nesse novo best-seller, o autor de "O Andar do Bêbado" reúne pesquisas para atestar que até as escolhas e decisões que nos parecem mais objetivas são forjadas no inconsciente. Mais que isso, ele incita o leitor a dar mais crédito aos pressentimentos que surgem do "lado escuro da mente".
"Ex" lado escuro, melhor dizer. Na visão do físico, as tecnologias que permitem o mapeamento do cérebro -vivo e em funcionamento- estão mudando a compreensão sobre a atividade que ocorre abaixo da consciência.
A existência de uma vida inconsciente paralela e poderosa não é novidade há mais de um século. A novidade é que agora ela pode ser medida "com algum grau de precisão", como diz Mlodinow, que vê aí uma nova "ciência do inconsciente".
Para a maioria dos mortais, é difícil admitir que o inconsciente está no comando. "Somos tão frágeis que precisamos inventar justificativas lógicas para as escolhas", afirma o analista junguiano Roberto Gambini, de São Paulo.
"O melhor é aceitar que o consciente é permeado pelo inconsciente. E haverá sempre uma parte que vai permanecer misteriosa. Nem toda a tecnologia é capaz de mudar isso. Mas é possível diluir essas fronteiras e colocar essa capacidade de perceber o subliminar a nosso favor, quando prestamos atenção aos sonhos ou dedicamos um tempo para meditar."
PALPITES
Cientistas que dirigem as pesquisas de ponta consideram que o "novo inconsciente" é totalmente enraizado em funções orgânicas e essa seria a chave para compreender as emoções humanas.
Não há consenso sobre isso, naturalmente: "É absurdo pensar que entender as funções cerebrais é suficiente para lidar com os sentimentos", diz Lídia Aratangy, psicanalista formada em biologia médica.
Em um ponto os "psis" e o físico concordam: "O inconsciente é otimista", diz Mlodinow. "Ele nos torna mais completos e aptos para seguir na evolução da consciência", acredita Gambini. Aratangy completa: "Reconhecer os palpites do inconsciente pode nos ajudar a fazer escolhas melhores".
'Todos os nossos julgamentos são afetados por motivações subliminares'
COLABORAÇÃO PARA A FOLHADoutor em física e matemática, o americano Leonard Mlodinow se interessa pela mente humana e pelo acaso. Além de ensinar teoria da aleatoriedade no Instituto de Tecnologia da Califórnia, ele já escreveu roteiros para séries de TV como "MacGyver" e "Jornada nas Estrelas" e livros de divulgação científica que viraram best-sellers.Foi assim nos casos de "O Andar do Bêbado" e "Uma Nova História do Tempo" -esse em parceria com Stephen Hawking. Em "Subliminar" (Ed. Zahar), lançado neste mês no Brasil, Mlodinow, 59, reúne dezenas de experimentos para dizer que somos comandados por dois cérebros: o consciente, que responde por 5% da capacidade cognitiva, e o inconsciente, que dá conta dos outros 95%. Os dois cérebros atuam juntos para garantir desde a mais básica sobrevivência até a escolha de um bom vinho. Nesta entrevista por e-mail, o autor tenta explicar como aquilo que não percebemos afeta as nossas escolhas.
Folha - Como o inconsciente comanda nossa vida?
Leonard Mlodinow - O inconsciente governa o nosso coração, os movimentos, a visão e a audição e nos permite andar, falar e reagir sem parar para pensar a cada palavra ou movimento. Só os humanos têm essa capacidade bem desenvolvida, e os cientistas não sabem por que é assim. Todos os julgamentos são afetados por sentimentos que não percebemos.
O senhor diz no livro que processos como percepção ou julgamento são comandados por estruturas cerebrais separadas da consciência. Como sabemos isso?
Por meio dos recentes avanços da neurociência nós sabemos que essas estruturas são inerentes à mente inconsciente e inacessíveis à mente consciente. Estão conectadas e todo o trabalho é feito em conjunto para criar uma experiência da realidade em termos físicos e em termos das relações sociais.
Pode dar um exemplo de como a razão sai de campo na hora das decisões?
Em um estudo feito em um supermercado da Inglaterra, dispuseram nas prateleiras vinhos franceses e vinhos alemães. Música francesa e alemã eram alternadas no alto-falante. Nos dias com trilha sonora francesa, 77% dos vinhos escolhidos eram franceses; nos dias de hits germânicos, 73% das garrafas vendidas eram da Alemanha. Mas só um em cada sete consumidores declarou ter sido influenciado pelo som.
E na hora de escolher parceiro, o inconsciente comanda?
Isso é um pouco mais complicado. Existem elementos sutis. Por exemplo, o rosto ou a voz da pessoa nos parecem familiares. Pode ser um sorriso ou músculos bem torneados. Experimentos mostram que o nome de uma pessoa pode influenciar o coração, caso ele combine com o nosso. Em questões financeiras também acontece: em Wall Street, ações com nomes fáceis de pronunciar são mais procuradas por investidores.
Assumir que somos guiados pelo subliminar nos torna mais ou menos lúcidos?
Quanto mais compreendermos as motivações subliminares, melhor nossa mente consciente poderá fazer julgamentos acertados.
De que maneira a compreensão da fisiologia do cérebro ajuda a lidar com medo, raiva?
Quando encontro algo perigoso no ambiente -um animal feroz, uma pessoa agressiva- imediatamente isso é registrado pelo inconsciente e o corpo responde com mudanças no nível de adrenalina ou na pulsação.
Essa resposta acontece em grande parte na região do cérebro chamada amígdala. A mente consciente percebe a resposta corporal um ou dois segundos depois e leva isso em conta para interpretar o que está acontecendo. Depois disso percebemos que estamos sentindo é medo. Com a raiva é semelhante. Outras emoções menos primárias como angústia ou embaraço funcionam de um modo um pouco mais complicado -mas, basicamente, é o mesmo mecanismo.
Essa maneira de sentir é útil para tomar a atitude necessária rapidamente, deixando para pensar sobre o ocorrido depois.
O senhor diz que não choramos porque nos sentimos tristes, mas, ao contrário: tomamos ciência de que estamos tristes porque choramos. Fingir um sorriso pode, de fato, despertar um estado feliz?
Há muito tempo os professores de ioga dizem: "Acalme seu corpo, acalme sua mente". A neurociência social, agora, dá evidências disso. De fato, estudos sugerem que assumir o estado físico de alguém feliz pode fazer você se sentir mais feliz.
Nessa era do 'novo inconsciente', o divã nada pode?
Tanta gente faz anos de psicanálise e não chega a lugar algum. Claro, Freud teve o mérito de ter descoberto o inconsciente usando métodos imprecisos, o que produziu um conhecimento difuso, mas, mesmo assim, a origem das emoções permaneceu obscura. Hoje, o intercâmbio entre neurociência e psicologia experimental e os avanços da tecnologia nos permitem, pela primeira vez, construir uma ciência do inconsciente.
TRECHOS
A noção de que não estamos cientes da causa de parte do nosso comportamento é difícil de aceitar. Embora Freud e seguidores acreditassem nisso, entre os cientistas, até há pouco, a ideia de que o inconsciente é importante para o comportamento era descartada como psicologia popular.
O inconsciente divisado por Freud, nas palavras de um grupo de neurocientistas, era "quente e úmido: fervilhava de ira e luxúria; era alucinatório, primitivo e irracional", enquanto o novo inconsciente é "mais delicado e gentil que isso e está mais ligado à realidade". Nessa nova visão, os processos mentais são considerados inconscientes porque há parcelas da mente inacessíveis ao consciente por causa da arquitetura do cérebro, não por estarem sujeitas a formas motivacionais, como a repressão. A inacessibilidade do novo inconsciente não é vista como um mecanismo de defesa ou como algo não saudável. É considerada normal.
A mosca-das-frutas e a tartaruga estão no nível mais baixo na escala de potência cerebral, mas o papel do processamento automático não se limita a essas criaturas primitivas. Os seres humanos também desempenham inúmeros comportamentos automáticos, mas tendem a não perceber isso porque a interação entre nossa mente inconsciente e a consciente é muito complexa.
OPINIÃO
Escreveu, não leu...
O conceito freudiano de inconsciente é alvo especial de 'achismo'
Freud parece ter um lugar de destaque nessa galeria. Desperta ódio entre feministas e preconceitos variados.Mas há conceitos seus que são alvos especiais do "achismo" baseado no ouvir falar, entre eles o do inconsciente. Enquanto a coisa se dá como palpite de botequim, a liberdade de expressão a protege. Mas, quando a distorção sai escrita por "sábios", aí é preciso dizer umas coisas em nome do velho professor.
Eu sei como termina a frase do título, mas ouvi um final mais engraçado para ela: "Escreveu, não leu... é analfabeto funcional". Tal condição poderia se aplicar a quem escreve que o inconsciente descrito por Freud é lúgubre e doentio. Ou a quem escreve, como se fosse novidade, que 90% do que fazemos não se origina na consciência.
Ora, Freud nos descreveu como alguém montado a cavalo (o cavalo seria o inconsciente). O cavaleiro pode ter a impressão de que está no comando, mas é frequente que o cavalo tenha ideias próprias e a direção mude. Ele descreveu três instâncias para além do que percebemos de forma consciente:
1. O grande oceano inconsciente do "id" (a boa tradução do alemão "das es" seria "algo em nós", como na frase "algo em mim me diz que..."), onde mora o motor de nossos atos chamado "desejo", emaranhado de memórias com instintos animais primitivos cuja maior ordem é procriar (daí dizerem que Freud só pensava "naquilo").
2. O inconsciente reprimido pelo superego (programa que nos critica e censura, além de estabelecer ideais inalcançáveis se alimentado por nossa criação nesse sentido), onde moram impulsos considerados proibidos. Exemplo: o desejo exibicionista, que faz parte do sexual, pode ser visto como errado e virar timidez. Esse inconsciente, sim, é causador de doenças, pois a timidez pode se tornar fobia social.
3. O pré-consciente. Esse guarda memórias e percepções que não estão na tela consciente no momento, mas podem entrar nela. Exemplo: o que você comeu no jantar? Agora que perguntei, a memória saiu do pré-consciente e se tornou consciente. Mulheres costumam levá-lo a sério, são capazes de dizer "ele está me traindo" porque perceberam que o marido saiu com um nó duplo na gravata e voltou com um nó simples ("em algum momento ele tirou a roupa"). É o mesmo que nos diz para não comprar carro usado de certos ministros de Minas e Energia, só de olhar para a cara deles.
Portanto, se vai publicar algo sério sobre alguém, é melhor ler antes.
FRANCISCO DAUDT é psicanalista e médico
Cada um com seu inconsciente
Pesquisadores do mundo subliminar
Fisiologista britânico, ele percebeu que "dois trens" distintos de ação mental operam ao mesmo tempo, um de forma consciente, outro de forma inconsciente. Escreveu que ações automáticas e inconscientes desempenham papel fundamental em todos os processos mentais, princípio seguido até hoje por pesquisadores
CHARLES SANDERS PEIRCE (1839-1914)
Matemático e filósofo americano, foi responsável pela 1ª demonstração científica de que a parte inconsciente da mente desenvolve conhecimentos que a consciência ignora. Fundou o pragmatismo
SIGMUND FREUD (1856-1939)
Neurologista austríaco, o pai da psicanálise popularizou o conceito de inconsciente. Segundo ele, o comportamento é regido por pulsões e formações do inconsciente, região que guarda memórias, necessidades e desejos reprimidos
CARL GUSTAV JUNG (1875-1961)
Médico psiquiatra suíço, foi discípulo de Freud, mas rompeu com o mestre e fundou a chamada "psicologia analítica". Considerou a existência de um "inconsciente coletivo" formado por sonhos, símbolos e mitos que transcenderiam o tempo e as culturas e seriam expressões da alma humana. Formulou o conceito de sincronicidade, isto é, um tipo de coincidência que ganha um significado especial para a pessoa a ponto de mudar suas escolhas conscientes
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