Torço que essa menina, que tem paralisia cerebral, não seja vista como mais um "exemplo de superação"
ACOMPANHO, FAZ alguns anos, a insistência gloriosa de uma menina com paralisia cerebral, comumente e erroneamente associada à deficiência intelectual, para ter o mesmo ar e os mesmos direitos que as crianças de sua idade que são certinhas.
Sofia tem equilíbrio afetado, os olhinhos ligeiramente descompassados, é toda tortinha e ostenta um sorriso conquistador. É cadeirantinha, sabida e atrevida, uma vez que é firme no propósito de mostrar que pode, que deve e que vai seguir adiante, mesmo com tanta gente desumana na chamada humanidade.
Com sete anos, a menina não foge a nenhuma empreitada, mesmo aquelas dignas de pedreiro de obras públicas -que nunca terminam. Parece que ela quer deixar muito claro ao mundo que o papel dela está sendo feito.
Insistiu ferozmente em viver, quando os diagnósticos só apontavam a ela o caminho do país dos "pés juntos". Insistiu em estudar, mesmo tendo batidas na cara portas de escolas que alegavam não saber tratar "diferenças".
Sofia foi impedida de brincar no parque porque "para ela era arriscado", não conseguiu academia de balé para saltitar, à sua maneira, porque "mal-acabadinhas" não bailam, não pôde fazer festa de aniversário porque não encontrou bufê que acolhia cadeirantinhos.
Por fim, há uns 15 dias, a "tia da van", que, paga pelo poder público recolhe diariamente a pequena e outras crianças para irem ao colégio, alegou que não tinha a "obrigação" de carregar a cadeira de rodas (que pesa como uma pena). A menina e a mãe que se virassem.
Em tão pouco tempo de vida, a menina já enfrentou mais desafios para seguir adiante que herói de jogo de videogame japonês. Da junção disso tudo, nasce em mim um musgo do rótulo assistencialista e hipócrita "criança especial" que alguns querem cunhar nos miúdos com deficiência.
Caso Sofia fosse mesmo especial, a ela estenderiam os tapetes vermelhos em vez de puxá-los, a ela dariam a mesa escolar com melhor visão da professora em vez de negá-la, a ela seria reservada a poltrona da van mais confortável e jamais colocariam obstáculos para garantir a ela acesso.
Causa em mim um desconforto imaginar o momento em que a pequena, igual à sua homônima do best-seller de Jostein Gaarder, irá começar a pensar sobre "quem somos", para "onde vamos" e outras filosofadas relativas à raça humana.
Será que ela conseguirá crer que há muita seriedade nas atitudes políticas que visam à igualdade? Sofia vai botar fé em que o homem é sempre pela construção de uma melhor realidade conjunta, e não um poço de individualidade? A menina vai nutrir em si o amor pelo outro e entender a validade profunda do conceito de cidadania?
Sou convicto de que Sofia será, no futuro, o que bem entender: cientista, médica ou astronauta. Torço, porém, para que ela não seja vista como mais um "exemplo de superação" que teve de passar pelo buraco de uma agulha para conseguir costurar a própria vida.
Torço para que, no futuro, Sofia seja uma pessoa que tenha tido condições dignas de seguir adiante com seus anseios e sonhos viabilizados por uma sociedade que entende, respeita e dá a todos condições para que tenham o mundo que quiserem.
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