Quem quer viver para sempre?
Se me dissessem que o meu futuro duraria uma eternidade, seria o primeiro a pular da janela sem hesitar
Mas eu falo de história, não de afetos. Se tivesse nascido em Portugal cem anos atrás, já haveria lápide e caixão. Dá para acreditar que, em inícios do século 20, a esperança média de vida para os homens portugueses rondasse os 35-40 anos?
Hoje, andará pelos 80. O que significa que, com sorte e algum bom humor do Altíssimo, eu estou apenas no meio da viagem.
Se juntarmos os progressos da medicina no futuro próximo, é possível que a viagem seja alargada mais um pouco. Cem anos, cento e tal. Nada mau.
Um artigo recente da "Nature", aliás, promete revoluções para a minha pobre carcaça. O segredo está no hipotálamo cerebral e numa proteína do dito cujo que regula o envelhecimento humano.
Não entro em pormenores, até porque eu próprio não os entendo. Mas eis o negócio: se a proteína é estimulada, os ratinhos morrem mais depressa. Se a proteína é inibida, acontece o inverso.
Falamos de ratos, por enquanto, o que significa que a descoberta só terá aplicação imediata entre a classe política.
Mas o leitor entende onde eu quero chegar. E eu quero chegar à maior promessa de todas: o dia em que seremos finalmente imortais.
Na história da cultura ocidental, esse dia pode estar no passado distante (ler o poeta grego Hesíodo, ler a Bíblia).
Ou pode estar no futuro, como garantem os "transumanistas". Falo de uma corrente bioética perfeitamente respeitável que se dedica a essa causa: o destino da humanidade não está em morrer aos cem. Está em viver indefinidamente depois dos cem. Como?
Através dos avanços da tecnologia, claro. Porque só a tecnologia permitirá aos homens suplantar a sua infantil condição mortal.
O nosso corpo é apenas a primeira casca de todas as cascas que estarão para vir. E quem, em juízo perfeito, não gostaria de viver para sempre?
Curiosamente, há quem não queira. O filósofo inglês Roger Scruton, em ensaio recente, dedica um capítulo específico aos transumanistas. O livro intitula-se "The Uses of Pessimism and the Dangers of False Hope" (os usos do pessimismo e os perigos da falsa esperança). Segundo sei, será publicado no Brasil em breve. Recomendo.
Primeiro, porque é uma súmula perfeita do pensamento de Scruton, escrito com a elegância habitual do autor.
Mas sobretudo porque é a mais brilhante refutação do pensamento utópico --e em particular do pensamento utópico transumanista de autores como o norte-americano Ray Kurzweil ou o britânico Max More--, que me lembro de ter lido.
Isso deve-se, em grande parte, ao fato corajoso de Scruton ter sido capaz de virar o debate do avesso e perguntar: por que motivo a doença e a morte devem ser vistos como males intoleráveis que devemos erradicar? Não será possível olhar para eles como bens necessários?
Certo, certo: ninguém ama a doença e, tirando casos extremos, ninguém deseja morrer. Só que esse não é o ponto.
O ponto é que, sem a doença e a morte, a vida não teria qualquer valor em si mesma.
Os projetos que fazemos; as viagens com que sonhamos; os amores que temos, perdemos, procuramos; e até a descendência que deixamos --tudo isso parte da mesma premissa: o fato singelo de não termos todo o tempo do mundo.
Vivemos, escolhemos, amamos --porque temos urgência em viver, escolher e amar. Se retirarmos a urgência da equação, podemos ainda viver eternamente.
Mas viveremos uma eternidade de tédio em que nada tem sentido porque nada precisa ter sentido. Sem a importância do efêmero, nada se torna importante.
Os transumanistas sonham com um mundo pós-humano. É provável que esse mundo seja possível no futuro, quando a técnica suplantar a nossa casca primitiva.
Mas esse mundo, até pela sua própria definição, será um filme diferente. Não será um filme para seres humanos tal como os conhecemos e reconhecemos.
Viver até os cem? Agradeço. Cento e vinte também servem. Mas se me dissessem hoje mesmo que o meu futuro duraria uma eternidade, eu seria o primeiro a pular da janela sem hesitar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário