Primavera violenta
Neste mês de maio, comemora-se cem anos da estreia de "A Sagração da Primavera", de Igor Stravinsky. Este é um bom momento para se perguntar sobre o legado de um dos mais importantes compositores do século 20.
A primeira apresentação dessa obra instauradora, em Paris, com coreografia feita por Nijinsky, causou uma das mais célebres e violentas reações do público contra uma peça musical. Tal apresentação acabou por entrar para a história como a síntese maior do conflito que marcou a música a partir de então.
A reação agressiva de parte do público que ouviu Stravinsky prenunciou a forma com que a consciência, tão presente na Sagração, do esgotamento da capacidade expressiva da linguagem musical foi socialmente recebida. Uma reação que prenunciou a violenta recusa (que pode ir da agressividade à indiferença) com que, ainda hoje, boa parte da produção musical mais importante de nossa época é escutada.
Mas, como dizia Lacan, uma carta sempre chega a seus destinatários. Aqueles que reconheceram na obra de Stravinsky o anúncio de um horizonte de novas possibilidades acabaram por se impor atualmente como uma corrente hegemônica de produção musical. Haveria uma linha reta a traçar entre o compositor russo e alguns dos compositores contemporâneos mais prolíficos, como John Adams (com sua claramente stranviskiana "Son of Chamber Symphony", de 2007) e Thomas Adès.
Em todos esses casos, encontramos estratégias de composição levadas à maestria por Stravinsky, como o uso de elementos desgastados da linguagem musical enquanto modo de afirmação do esgotamento da capacidade construtiva da tonalidade, o recurso sistemático à ironia e à paródia (marca maior de sua fase neoclássica, como o balé "Pulcinella") e a transformação do desenvolvimento rítmico em parâmetro estruturador da forma musical, e não mais como um parâmetro secundário.
Mesmo que não seja Stravinsky aquele que pela primeira vez se serviu de tais estratégias (Mahler, por exemplo, já compunha com materiais desgastados e os quartetos de Haydn são plenos de ironias musicais), foi ele que as articulou dentro de um programa modernista de ruptura.
Foi graças à via inovadora de Stravinsky que nenhum musicólogo consciente falará em algo como o pós-modernismo em música. Seu modernismo já era a articulação de tudo o que posteriormente o pós-modernismo levantou contra os modernos. O que demonstra como uma reflexão mais atenta sobre a estética musical nos permitiria uma análise diferente de quem são, de fato, nossos contemporâneos e quando realmente começa a nossa época.
Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às terças na Página A2 da versão impressa.
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