Filho de Renato Russo visita o apartamento onde o pai viveu nos anos 90
A caminho do apartamento de seu pai, Renato Russo, em Ipanema, na zona sul do Rio de Janeiro, Giuliano Manfredini, 24, lembra que não tem a cópia da chave da porta de madeira que garante acesso ao interior do prédio. Por sorte, o zelador do edifício de três andares está a postos. E permite a entrada.
O imóvel, onde o cantor viveu nos anos 90, está exatamente igual ao dia em que ele morreu, em 1996. Durante todos esses anos, Cíntia Paiva, a secretária particular de Renato Russo, visitou o local quase todas as semanas. Levava uma faxineira que limpava os móveis, passava pano no chão, lavava e passava as camisas floridas e as batas brancas que ele usava dentro e fora dos palcos.
Carmen Manfredini, a irmã do cantor, e o pai, Renato, faziam visitas periódicas ao local. Foi dela a ideia de preservar o lugar, buscando manter objetos e materiais inéditos. A mãe, Maria do Carmo, nunca mais pisou lá. Giuliano, que quando criança passou férias, finais de semana e feriados com o cantor no imóvel, também ficou longe. Os avós queriam poupá-lo. Até que, há dez dias, ele decidiu voltar à casa do pai.
"Entrei e vi que, depois de muitos anos, a posição dos móveis era praticamente a mesma do passado", diz.
Filho de Renato Russo mostra a casa de seu pai
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Giuliano Manfredini, 24, único filho de Renato Russo, morto em 1996
Começou então a viagem da descoberta. Na estante de quase 2 m, no corredor que dá para os quartos, encontrou dezenas de cadernos, com letras, rabiscos, poemas e anotações de Renato Russo em páginas amareladas.
Ele escolhe um, abre ao acaso e mostra ao repórter Alberto Pereira Jr. Lê a frase escrita pelo pai: "O Brasil é uma República Federativa cheia de árvores e de gente dizendo adeus". "Quero pegar cada caderno, manuscrito por manuscrito, ler e pesquisar o universo dele", diz.
Recortes de jornais com reportagens da banda Legião Urbana, da qual Renato era líder, foram embalados em papel-filme para resistir ao tempo. Quadros do compositor enfeitam as paredes. "Eu nem sabia que ele era pintor. Era um artista completo."
Ele segue até o quarto. Ao lado da cama, um outro armário guarda a coleção de ursos de pelúcia do cantor. "Meu pai gostava muito de ursinhos." No teto, em cima da cama, colagens de planetas e de estrelas.
"Quando entrei aqui, depois de todos esses anos, uma estrelinha caiu. Claro que tudo é energia e tem a energia dele aqui. Mas, como kardecista, acredito que meu pai já tenha superado a fase terrena. O espírito evoluiu. Quero que ele se liberte."
Móveis têm as marcas de queimaduras de pontas de cigarro de Renato Russo. "Mas ele se preocupava com a saúde. Não saía muito de casa, por isso comprou uma esteira." O equipamento ainda está lá, montado no corredor.
"Momentos ruins e bons sempre existiram. Meu pai não precisava esconder quem ele era ou medir suas palavras. Quando estava bravo, eu via. Quando estava feliz, também", diz Giuliano, que tem tatuado no braço esquerdo o violão-símbolo da Legião Urbana e na perna, a frase "força sempre", em japonês. Era o "mantra" do músico.
Sentado numa poltrona na sala de estar, Giuliano se recorda de um Natal "quando tinha cinco ou seis anos". "A árvore ficava em cima desse baú, no canto. Lembro que ele me deu um estojo de lápis de cor. Foi um dos melhores presentes que ganhei dele."
"Foi a melhor fase da minha vida. Eu não via meu pai como o Renato Russo. Sabia que era famoso, mas não me importava muito. Ele era simples, era tudo muito simples. Ele era só o meu pai."
No fim dos anos 80, compôs "Pais e Filhos", em que dizia: "Já morei em tanta casa que nem me lembro mais/ Eu moro com meus pais". E, em outra estrofe: "É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã/Porque se você parar para pensar, na verdade não há (...) Você culpa seus pais por tudo/E isso é absurdo/São crianças como você/O que você vai ser, quando você crescer?".
Giuliano diz que "muita gente acha" que a canção era para ele. "Mas meu pai não compunha música pensando em uma só pessoa. Ele fazia uma colagem, suas músicas tinham várias referências. 'Pais e Filhos' tem partes que podem ter sido escritas para mim, sim, mas nem tudo. Por isso que todo mundo se identificava tanto com as músicas, elas eram universais. Cada um achava que elas poderiam ter sido escritas para si."
A mãe de Giuliano, Raphaela Manuel Bueno, morreu quando ele era recém-nascido. Criado pelos avós paternos, em Brasília, ele viajava ao Rio para visitar o pai. Diz nunca ter tido contato nem ter sido procurado pela família de Raphaela.
Aos 16 anos, chegou a montar uma banda, a Oxiúrus (nome de verme que causa problemas intestinais). "Eu era um péssimo guitarrista e a banda era péssima também. Ninguém chamava a gente para shows. Passei a produzir pequenas apresentações. No bastidor me sinto mais à vontade, realizado."
Neste ano, Giuliano, formado em direito e administração, assumiu o comando da Legião Urbana Produções Artísticas, empresa idealizada por Renato Russo para administrar a própria obra. Até então, a companhia estava sob os cuidados da avó Maria do Carmo, a quem chama de mãe. Sentiu então que "era a hora de enfrentar esse passado e visitar o apartamento". Uma exposição de objetos pessoais de Elvis Presley, na casa em que o astro viveu, nos Estados Unidos, é exemplo.
Todo o material encontrado no imóvel de Renato será catalogado para uma exposição multimídia itinerante. "Os fãs terão acesso a todo o acervo, manuscritos, livros, CDs. Quero recriar o universo dele, que era bem diverso. Ouvia Menudos, Bach. Lia Shakespeare, Jane Austen, Balzac, a maioria em inglês. Mas ainda não tem data. Tenho 24 anos e bastante tempo e material para trabalhar."
Ele agora está envolvido no lançamento de "Faroeste Caboclo", de René Sampaio, filme de ficção baseado na música de Renato Russo e que estreou na quinta. "Li o roteiro, rodei com os atores pelo Distrito Federal."
Já o filme "Somos tão Jovens", de Antônio Carlos da Fontoura, sobre a juventude do cantor, foi acompanhado por Carmen, a tia de Giuliano. Em cartaz há quase um mês, já foi visto por mais de 1,5 milhão. "Como entretenimento, é bacana. Mas meu pai era muito mais visceral e profundo [do que o filme mostra]. Era ditadura [militar]. Ali era o início de tudo. Uma fase pesada de Brasília."
No próximo dia 29, o estádio Mané Garrincha, em Brasília, será inaugurado com o concerto "Renato Russo Sinfônico", em que estrelas da música nacional interpretarão sucessos da Legião.
"É o início de um pacote de preservação da memória do meu pai e de seu legado. Um show que ele planejou há 20 anos, com o maestro Silvio Barbato, mas que foi interrompido pela morte de ambos. Será uma ópera rock." A imagem do cantor será projetada no palco, por meio de um holograma. Ele aparecerá cantando, em 3D. A orquestra o acompanhará.
Mônica Bergamo, jornalista, assina coluna diária publicada na página 2 da versão impressa de "Ilustrada". Traz informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999.
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