A invasão sulina
Por que tanto gaúcho nas letras brasileiras?
O interessado em livros pega as listas de mais vendidos e encontra Lya Luft, Luis Fernando Verissimo, Martha Medeiros, Leticia Wierzchowski, Eduardo Bueno. Chega na prateleira de lançamentos encontra João Gilberto Noll, Cláudia Tajes, Luiz Antonio de Assis Brasil, Charles Kiefer e Fabrício Carpinejar. Pode se surpreender pela presença de novos títulos ou reedições quentes dos falecidos Moacyr Scliar, Caio Fernando Abreu e Fausto Wolff.
Consulta críticos com faro para novidades e recebe a sugestão de procurar Vitor Ramil, Marcia Tiburi, Amilcar Bettega, Cíntia Moscovich, mas também gente mais jovem e já provada, como Paulo Scott, Marcelo Backes, Michel Laub, Daniel Galera, Clarah Averbuck. Se estiver atrás de novidades formais que combinem ousadia e inteligência, será aconselhado a ler Paulo Ribeiro, Altair Martins, Carol Bensimon, Angélica Freitas, Ismael Caneppele, Daniel Pellizzari, Cardoso e Leandro Sarmatz, para nem falar de gente na categoria júnior, mas já premiada, como Luisa Geisler.
Digamos que o interessado queira saber de traduções relevantes para o português brasileiro dos últimos tempos; neste caso é provável que tome conhecimento de Shakespeares intermediados por Beatriz Viégas-Faria e Elvio Funck. De David Foster Wallace por Galera e Pellizzari, de Michel Houellebecq por Juremir Machado da Silva, de uma penca de germânicos traduzidos por Marcelo Backes, de um "Quixote" recém-saído das mãos de Ernani Ssó, ou de uma supercriativa "Alice" refeita por Jorge Furtado e Liziane Kugland.
Tradutores finos, até de poesia? Paulo Neves e Heloisa Jahn. Estava esquecendo da "Odisseia" homérica, vertida a um português fluente por Donaldo Schüler (e publicada em pocket, mas bilíngue, pela L&PM), que, como se não bastasse, operou o milagre de dar à cultura local nada menos que o "Finnegans Wake", de Joyce, pela primeira vez na íntegra em nossa língua.
O que têm em comum todos os nomes citados até aqui? São todos gaúchos. Eles e bons críticos como Jerônimo Teixeira; eles e professores de literatura de alto calibre como Homero Araújo, Jaime Ginzburg e Eduardo Sterzi, que sucedem a outra geração, de Flávio Aguiar, Flávio Kothe, Flávio Loureiro Chaves, Regina Zilberman, Lígia Chiappini e Tânia Carvalhal; eles e escritores infantis bem-sucedidos como Lygia Bojunga, Paula Mastroberti e Celso Gutfreind.
Alguma explicação?
SISTEMA LITERÁRIO Há várias explicações. Desde meados do século 19 o Rio Grande do Sul viu aparecerem escritores empenhados em criar obra e em favorecer a recepção dos livros --as duas pontas imprescindíveis para a existência de um sistema literário.
Nos começos do século 20 houve uma geração de profunda dedicação ao mundo popular e rural, com o expoente Simões Lopes Neto. Nos anos da explosão modernista, apareceram Mario Quintana, Erico Verissimo e Dyonelio Machado. Nos anos 1960, um novo grupo tomou a palavra, com Moacyr Scliar, Caio Fernando Abreu, Josué Guimarães, Sergio Faraco, Carlos Nejar, Tabajara Ruas, José Clemente Pozenato e Lya Luft.
Muito relevante, eles não se isolaram: quase sem exceção esses autores foram se sucedendo. Assim formou-se uma tradição interna.
No campo da crítica, podemos evocar a impressionante linhagem de machadianos. A primeira monografia sobre Machado de Assis em todo o país foi de Alcides Maya, "Algumas Notas Sobre o Humour'" (1912). Augusto Meyer surpreendeu o Brasil em "Machado de Assis" (1935), ao apontar familiaridade entre o brasileiro e Dostoiévski; em 1934, Vianna Moog havia publicado "Heróis da Decadência", emparelhando o escritor carioca com Petrônio e Cervantes. Ambos desprovincianizaram Machado, ainda afogado em comparações paroquiais com Eça de Queirós. Outro ilustre dessa família, Raymundo Faoro apresentou "A Pirâmide e o Trapézio" em 1974.
Instituições: em 1868 foi fundada a Sociedade Partenon Literário, confraria de escritores que desde o primeiro momento se definiu como republicana e admitiu mulheres, avanço nada desprezível. Também não é menor a dedicação de seus membros à alfabetização gratuita de adultos. Era uma instituição típica da sociedade civil tomando a frente do processo, num momento de vida cultural rarefeita.
Nos anos Vargas, em coincidência nada fortuita, outra grande instituição apareceu: a livraria e editora Globo. Era a iniciativa privada no comando. Traduções memoráveis, produção de livros para consumo massivo, oportunidade para novos escritores locais, tudo isso se combinou de modo muito positivo, com Erico Verissimo à frente e uma verdadeira universidade técnica na retaguarda. A Globo é um ponto alto da história das editoras sulinas, que começou antes e alcança o presente com exemplos significativos, como a L&PM, entre as grandes, a Arquipélago, a Belas Letras, a Não Editora ou a 8Inverso, entre as novas.
Nos anos 1970, plena ditadura, uma instituição estatal foi o novo patamar do desenvolvimento do sistema: o Instituto Estadual do Livro, que inventou estratégias de divulgação excelentes, sendo a principal aquela que levava novos escritores locais até escolas, mediante leitura prévia de livros seus, com cachê pago pelo Estado e outras despesas bancadas pelas escolas. Isso alavancou carreiras como a de Scliar.
Numa época em que não se sonhava ainda com a Flip e congêneres, o Rio Grande do Sul já fazia eventos massivos de sucesso. O mais antigo é a Feira do Livro de Porto Alegre, que funciona desde 1955, sem interrupção, levando dezenas de lojas de livros para a praça pública da capital e oferecendo venda fácil, debates, conversas.
Na remota Passo Fundo, acontece a cada dois anos a Jornada de Literatura, desde 1981; junta milhares de pessoas de um raio de 400 km, especialmente professores. Nos dois casos a lógica se opõe à das festas literárias: as cidades de encontro são as do cotidiano, não as de turismo, e o público é o comum, não o eventual ou excepcional.
HISTÓRIA As razões históricas e sociológicas se estendem fundo e longe. Até a geografia entra na conta: o sul é frio, e o frio convida ao recolhimento e aos estados meditativos, mais do que o calor. Também a fatalidade geográfica condiciona a existência do Estado na ponta extrema do país, fronteira viva com o Império Espanhol e, depois, com países de língua espanhola, a única nessa condição por mais de século e meio.
Há uma respeitável tradição republicana. A Guerra dos Farrapos (1835-45) resultou na proclamação da República do Piratini, em 1836, motivo de pânico na capital do Império brasileiro. Em sentido mais difuso, pode-se postular certo traço republicano na sociedade das Missões jesuíticas, ao menos no sentido de que os indivíduos tinham educação (ocidental) de nível excepcional para o tempo.
A força da escola, aliás, é dos motivos mais fortes para o prestígio da literatura: na Primeira República foram feitos notáveis avanços na oferta de educação pública, que se reforçou muito nos anos Vargas e multiplicou-se sob Brizola governador (virada dos anos 50). Muito desse patrimônio se perdeu nos anos do presente, lamentavelmente.
Acresce que o Estado recebeu dezenas de milhares de imigrantes alemães e italianos, a partir de 1825 e até a Segunda Guerra Mundial (1939-45), que se destinaram basicamente a comunidades rurais de pequenos proprietários. Ali, o professor era figura central, tanto quanto o oficiante religioso ou o organizador das cooperativas.
Há, porém, uma contraparte ideológica impactante. A derrota dos farroupilhas ecoa ainda hoje, no imaginário e até em práticas políticas, na forma de um ressentimento contra o poder central do Brasil "oe esse ressentimento, temperado por uma enorme patrimônio de história bélica e somado ao refluxo pós-Vargas, resulta em bons motivos e farto material para a literatura.
Assim, na geografia e na história, temos a força de uma tradição e uma utopia autonomista, que também obriga à literatura, tomada como lugar de expressão e meditação sobre as forças que atuam na vida.
Não se podem negligenciar outros valores. Um é o manancial gaúcho de agregação e luta social: o Partido Republicano, o antigo PTB, o sindicalismo, o cooperativismo, o ativismo ecológico, as igrejas com acento social e popular, o orçamento participativo, o tradicionalismo gauchesco.
Outro é a extensa variedade cultural, étnica e social, com alguns traços cosmopolitas: há os gaúchos do campo, que viraram símbolo identitário geral; mas há cidades de inserção internacional forte, abertas à novidade, como Pelotas e Porto Alegre; há uma forte pequena propriedade rural, com imigrantes alemães e italianos, com tendência à agroindústria; há núcleos negros de grande força de coesão social; há uma comunidade judaica significativa; há uma história indígena forte, nas Missões --o Rio Grande do Sul talvez seja o único lugar do Brasil em que é elogio chamar alguém de índio!
LIMITES Aí estão algumas linhas de força a explicar aquela superpresença de gaúchos nas letras brasileiras. Elas igualmente falam dos limites do processo: ser a literatura de uma sociedade de classe média, em volume massivo para o quadro brasileiro, implica conter as ousadias e investir em linguagem acessível, assim como implica dialogar com os temas demandados socialmente, em detrimento das ousadias temáticas. Implica não ser literatura de vanguarda, coisa para elites muito cultas, nem literatura proletária, coisa para... para quem mesmo?
Por isso há muito mais "main- stream" do que vanguarda e há escritores comunicativos como Erico Verissimo e Quintana, mas pouca invenção. Não por outro motivo os poetas gaúchos nunca perfilam entre os mais significativos, do país ou da língua --porque a mediania cabe no romance, até mesmo no bom romance, mas só costuma caber na poesia fraca.
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