Uma fábula do protesto de junho
'Povo das ruas' vai se olhar no espelho quando invadir o Castelo do Tudo-Que-Está-Aí
A QUEIXA VELHA sobre impostos excessivos em troca de serviços públicos ruins tornou-se uma fórmula chocha que tentou traduzir a "voz das ruas". Fez par com a "crise de representação" ou "os políticos não me representam".
Somados, os dois lemas sugerem que no fim desse arco-íris com sete tons de cinza ("tudo que está aí", "políticos") há um pote de ouro a ser aberto e dividido para o bem geral.
No que vai dar um protesto que marcha para abrir as cadeias da Bastilha (o "governo") e descobre que há lá só uma dúzia de presos, em vez de milhares de vítimas dos "políticos" da corte de Versalhes?
Talvez os impostos não sejam tantos assim. Ou melhor: os impostos não são recolhidos com o fim de prover "serviços públicos de qualidade".
Os impostos federais pagam aposentados, salários e aposentadorias dos servidores, juros da dívida, benefícios sociais para miseráveis e coisas como seguro-desemprego. E o dinheiro acabou. O resto, para bancar "educação, saúde e transporte de qualidade", é muito pouco e já é deficit, financiado com dívida.
Tal sistema é feito de camadas arqueológicas do conflito social, aberto ou camuflado. Servidores, que inventaram o Estado e o jeito brasileiros de desenvolvimento (1930-1985), se criaram benefícios nem tão privilegiados assim, mas muito superiores ao do padrão médio de vida (tal Estado também bancou a criação da grande empresa nacional e beneficiários dela, a velha classe média).
Parte do INSS, benefícios para miseráveis e outras melhorias advindas, aos poucos, com a Carta de 1988 foram um remendão que mantém um mínimo de estabilidade sociopolítica num país pobre que tenta ser democrático em um regime de extrema desigualdade e violência. Sem isso, viveríamos em tumulto constante ou coisa pior.
Os juros da dívida remuneram a poupança das famílias muito ricas, ricas e remediadas ("fundos" de banco, por exemplo. No grosso, quem tem alguma poupança recebe juros da dívida).
De onde vem a dívida? Ficou enorme no esforço de estabilizar a economia (acabar com a hiperinflação, anos 1990) sem causar ruptura política ou social maior. Continuou a crescer com deficit para manter o sistema funcionando.
A inflação foi um meio de acumular capital para o Brasil desenvolvimentista, de concentração de renda, de bens para a "nova classe média" dos anos 1960-70 (outro meio de acumular capital, também tirado dos pobres, foi a repressão pura, pau nos trabalhadores peões).
Na fábula dos protestos de junho, o povo das ruas invade a Bastilha ou Versalhes e, sim, descobre que "políticos" e seus clientes (empresas e ricos) levam algum extra.
Mas, lá no fundo do castelo, o povo das ruas vai descobrir que, no grosso, paga para si mesmo, para seus avós aposentados, para acalmar miseráveis, para o subsídio da sua casa ou bens de consumo. Vai descobrir que, enfim, recebe de volta quase tudo que paga, de modo distorcido e desigual, decerto; quem recebe menos é o povo dos cafundós de cidades e sertões.
O povo das ruas vai descobrir que o pote de ouro é pequeno; que redividi-lo vai exigir conversa ou conflito. Talvez descubra que boa parte do ouro não está no castelo estatal.
No fundo desse castelo do "tudo que está aí", enfim, tem um espelho.
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