domingo, 14 de julho de 2013

A maçã envenenada - Michel laub

folha de são paulo
IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
A maçã envenenada
MICHEL LAUB
1.
Um suicídio muda tudo o que seu autor disse, cantou ou escreveu. Para milhões de fãs do Nirvana, banda que o levou a ser chamado de porta-voz de uma geração, Kurt Cobain não é a infância em Aberdeen, o início da carreira em Seattle, o estrelato precoce que acabaria mudando a história da música com o disco Nevermind, nem o álcool e as drogas e a espiral de desespero acompanhada reiteradamente pela mídia, incluindo o casamento tumultuado com a cantora Courtney Love e o nascimento de sua única filha, Frances Bean. Ou é isso tudo, mas apenas como conjunto de sintomas, um espelho que aponta por meio de letras e versões desencontradas para uma cena nunca esclarecida, Lake Washington, abril de 1994, horas ou dias antes de um eletricista descobrir seu corpo com um tiro de espingarda na cabeça.
2.
Para mim, Kurt Cobain sempre será o homem que subiu ao palco do Morumbi, em 1993, para o que mais tarde chamaria de pior show da carreira do Nirvana. Na época eu morava em Porto Alegre, tinha dezoito anos e estava no quartel: a primeira guarda, as primeiras recomendações do pernoite, eu de pé numa quinta-feira em frente a um sargento gordo que falava dos cuidados com o fuzil. Ele não conseguia dizer a palavra senha, dizia sanha, e qual é o procedimento correto? Ele mesmo respondia: alto lá e pedir a sanha.
Eu estava no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, o CPOR, o quartel dos universitários que escaparam de limpar estrume numa unidade de cavalaria ou apanhar de sabonete na Polícia do Exército. Não fazia muita diferença: eu também me submetia às ordens do sargento gordo, e não importava que fosse chamado de aluno em vez de soldado, tivesse aulas de sociologia com um major do Guerra na Selva, assistisse a palestras sobre doenças venéreas e orçamento da União. Não importava a ditadura de 1964 a 1985, nem o impeachment de Collor em 1992, nem que a vida militar brasileira não despertasse mais o interesse de ninguém, menos ainda de quem morava com os pais e tinha uma guitarra e fazia parte de uma banda como eu, porque todas as manhãs era preciso estar de uniforme às sete, corneta, balde e vassoura, e o nome técnico para a retirada da hera da quadra de basquete é cri-cri.
3.
Acabei no CPOR porque um major amigo da família disse que meu nome estaria numa lista de dispensas do quartel de triagem. Mas ao chegar lá um cabo perguntou endereço, data de nascimento e se eu fazia faculdade. Direito. Onde? Na Federal. Eu tinha acabado o segundo semestre e fazia estágio num escritório de advocacia não muito longe dali, para onde pretendia ir depois de pegar o certificado de dispensa e fazer hora num café do mercado público. Já estava até planejado, eu já sabia até a fita que ouviria no walkman para comemorar, mas o cabo procurou o nome na lista e riu e deu a resposta que todo cabo sonha dar para um estudante de camisa social e pasta de couro e fone no pescoço: então vai trancar a matrícula.
A fita era uma gravação de Nevermind. Nos últimos vinte anos é possível que eu tenha ouvido esse disco centenas, talvez milhares de vezes, e é como se em todas elas pudesse evocar 1993: a saída do quartel de triagem, a umidade e a sujeira do verão em Porto Alegre, o barulho dos ônibus e uma grávida que carregava um saco de lixo e era seguida por uma fila de cachorros enquanto eu olhava para o documento informando que a partir dali eu estaria sob jurisdição do Regulamento Disciplinar do Exército. Meu pelotão era o sexto, comandado pelo tenente Pires. Eram cinco colunas de seis, os mais altos à testa, os do fundo cobertos e alinhados tendo como referência a nuca do companheiro da frente. Trinta alunos, e com nenhum deles mantive contato. De nenhum eu tenho uma fotografia. Eu não sei se algum ainda vive em Porto Alegre, se teve filhos, se está vivo. Eu talvez não lembrasse de nada que aconteceu com eles além do folclore militar comum, o pelotão aprendendo a marchar, a fazer os movimentos com arma, a cantar no ritmo do passo direito enquanto a companhia desfila para o palco dos oficiais, não fosse uma história que começa com a vinda de Kurt Cobain para São Paulo.
4.
Na verdade, é uma história que começa antes, na noite em que conheci Valéria. Eu estava num bar da Independência, um lugar com escada de lata e paredes de suor condensado. Ela tinha a minha idade, a mãe morreu quando ela tinha quatro anos, o pai pagava para ela o aluguel de um quarto e sala a dois quarteirões dali, mas isso eu fiquei sabendo depois porque a primeira conversa foi objetiva: me disseram que você tem uma banda e está procurando uma cantora, alguém que suba lá e mande todo mundo se foder.
Eu olhei para ela: tatuagens antes de isso estar tão na moda, ela viu o meu copo e falei, gosta de vodca ruim? Sou masoquista, ela respondeu. Eu perguntei de quantas bandas ela tinha participado. Ela perguntou que tipo de música eu ouvia. Eu pedi outra dose, ela falou é nosso primeiro drinque juntos, aproveite porque pode ser o ápice, daqui para frente é um caminho sem volta, e fui reparando na boca e nos cabelos e na maneira como ela mexia os ombros e os quadris e quando me dei conta ela estava encostada em mim.
No apartamento de Valéria havia uma estante com fitas cassete, nomes de bandas desenhados em esferográfica, variações de caracteres quadrados e fontes com sombra e símbolos góticos e pontas imitando raios. Também havia um gato e um pôster de Kurt Cobain. A sala era um sofá puído e uma geladeira reformada que servia para guardar livros. Tenho gosto de velha para decoração, ela falou. Você gosta de coisa velha? Já trepou com uma pessoa mais velha? Eu tenho a sua idade, mas décadas a mais que você.
Como todo mundo nos anos 1990, Valéria cantava gritando. A banda também não era muito original, arranjos que alternavam leveza e peso, melodia e distorção, bases magras de baixo e bateria e a guitarra estourando com as três cordas graves nos refrões. Se você pegar os elementos básicos de Nevermind, os acordes maiores, os dedilhados e trivelas, as modulações de batidas e pausas e vocais reiterando as marteladas, tem todos os recursos das músicas que tocamos naqueles primeiros ensaios. Só que Valéria tinha uma certa doçura, mesmo que limitada à performance ao microfone, e já na primeira vez que a ouvi me dei conta de que isso faria diferença.
Entre a noite no bar da Independência e a vinda do Nirvana a São Paulo foram onze meses. Comparar o dia anterior ao primeiro encontro com Valéria e o posterior ao show é como falar de tempos diversos, mundos contrários entre si. De Valéria eu também não guardei fotos, nem uma peça de roupa, nem uma fita com alguma música da banda, mas é como se ela continuasse com dezoito anos num presente eterno, e cada vez que vejo os vídeos do Morumbi eu sei que ela está lá, nas trevas entre as primeiras filas, logo adiante de onde filmaram a entrada de Kurt Cobain em meio à luz azul.

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