Extremamente alto e incrivelmente perto
RESUMO Por cortar o tecido social quase de uma extremidade à outra, a ampla mobilização popular a que se assiste hoje no Brasil rechaça categorizações clássicas, não é passível de enquadramento em modelos analíticos genéricos. A não filiação a movimentos pregressos e a esquiva ao aparelhamento a inserem na ordem do mistério.Os movimentos de rua que aí estão colocam em saia justa não somente as autoridades públicas. Eles também aturdem a inteligência analítica ou puramente intelectual dos homens de ciência. Inteligência que tudo quer apreender para tudo descrever, conceituar, explicar por um modo exclusivamente racional.
Que é o modo pelo qual atua a mente humana, essa matriz de todo pensamento que se pretenda puro, ou seja, investigativo, metódico, reflexivo e demonstrativo. Essa ânsia racionalista nos toma como se o nosso quociente intelectual não fosse limitado no plano do conhecimento das coisas externas e também internas ao ser humano. Como se fosse possível dar um passo maior do que a perna no território do entendimento meramente cartesiano das coisas.
Tal categoria de analistas experimenta muita dificuldade em lidar com o incognoscível, a saber, com os objetos, fatos, eventos, fenômenos que já fazem parte de um terceiro estado de realidade: o mistério. Estado de mistério que se coloca, naturalmente, ao lado do estado das coisas já conhecidas e daquelas cognoscíveis, passíveis de assimilação. Essas últimas não perdem por esperar: mais cedo ou mais tarde serão apanhadas pela rede de arrasto da ciência e da tecnologia humanas.
Complemento o juízo: as coisas já conhecidas e aquelas passíveis de compreensão têm um ponto de identidade, que reside no fato de que ambas são suscetíveis de uma conceituação genérica. Trata-se aqui do conceito em abstrato ou da pura teorização a dar conta da tipologia do objeto sobre o qual incide.
É dizer, então: as coisas já conhecidas e aquelas que um dia se tornarão conhecidas (sua apreensão é uma questão de tempo) se abrem para um tipo de conceito-padrão porque se exteriorizam por uma forma que também tem na padronização sua característica central. Uma só forma, em linhas gerais, a recobrir qualquer das suas tópicas manifestações.
É o que se dá, por ilustração, com o fogo, o ar, a água, a terra, a luz; com o embrião, o feto, a criança, o adolescente, o jovem, o adulto, o idoso; com a moral, a religião, a etiqueta, os usos e costumes, o direito; com a bondade, a verdade, a beleza, a compaixão e outras categorias mentais suscetíveis de classificação por tipo, gênero, espécie, em síntese.
Ora, não é isso o que sucede com as coisas incognoscíveis. Essas já se alocam na imprecisa esfera do mistério, porque insubmissas a uma classificação tipológica ou padronizada. Não se encaixam num único molde para todo e qualquer aspecto de sua pontual manifestação. Numa frase, por maior que seja o número de suas empíricas ocorrências, as coisas ditas incognoscíveis não se prestam a generalizações teóricas ou antecipada classificação metódica. Logo, são abstratamente informes. Inconceituáveis em bloco ou aprioristicamente indescritíveis.
MULTIFORMA Ainda que inexplicáveis no plano da pura racionalidade (uma vez informes em tese), elas podem, entretanto, assumir qualquer forma em concreto. O que equivale a dizer, num aparente paradoxo: o genericamente informe é o que se abre a toda e qualquer forma em concreto. Caso da justiça, do amor, da eternidade, do nacionalismo ("As nações são mistérios. Cada uma delas é um mundo todo à parte", versejou Fernando Pessoa) e do próprio Deus.
O único modo de conhecê-las é sendo o que elas são, dizem as mais antigas escrituras sagradas hindus, conhecidas como "Upanishads". Existem, sim, porém como realidades aprioristicamente indescritíveis, na medida em que não se deixam aprisionar no cubículo dos conceitos previamente elaborados. Donde estes versos já antigos, de minha própria autoria: "A razão problematiza Deus, mas não consegue dar conta do tema. Como pode a razão dar conta do tema, se em matéria de Deus a razão é que é o problema?".
Pronto! É o que penso estar a acontecer com os movimentos populares dos dias presentes. São grandes demais, surpreendentes demais, entusiasmados demais, abertos demais, espalhados demais, intuitivos e instigantes demais para que deles se possa dizer algo que ultrapasse o mero comentário, formular entendimento que vá além da simples e precária opinião subjetiva, sem outro calço que não seja o corriqueiro "data vênia de entendimento contrário".
Eles não guardam a memória de qualquer movimento anterior de massa, e por isso é que chegam às vias públicas assim como quem tritura farelos de estrelas nas mãos consteladas. Desacumulados de tudo que é passado para criar a totalidade do espaço de que o virginalmente novo precisa para se concretizar sem contaminação.
Veja-se: irrompem em plena democracia como efeito e expressão da vitalidade que só ela tem, e não para trazer de volta regimes de exceção, pouco importando se militares ou então de natureza civil; assumem-se como uma instituição social em si mesmos, tanto espontânea quanto informalmente, mas não querem substituir as instituições oficiais (querem, sim, convocar tais instituições chapas-brancas a um repensar acerca do emperramento das respectivas juntas); não são aparelhados por quem quer que seja e também não aparelham ninguém.
Não têm o menor receio de desagradar gregos e troianos e tampouco se preocupam em "sair bem na fita"; expõem com a luminosidade do sol a pino do Nordeste a verdade de que a hediondez da corrupção é a principal responsável pela tragédia da renitente pobreza da maioria do povo. Não portam consigo o mais leve ranço de pauta corporativa, mas, ao contrário, apresentam-se como uma agenda propositiva para o Brasil (Marina Silva é quem o diz) e, quiçá, para uma nova e mais humanizada concepção de mundo.
TRAVESSIA Tal nova e humanizada agenda se vai encorpando a cada ostensiva manifestação, na clarividência de que a travessia em si é também um ser, um ente, um espírito do tempo que sai à cata dos seus mais arejados contornos, embora debaixo de todos os riscos. Travessia que não pode deixar de ser feita, contudo, sob pena de o país ficar à margem de si mesmo por um tempo ainda mais perigosamente alongado (como advertiu Fernando Pessoa acerca do desafio do crescimento interior de cada ser humano).
Enfim, os movimentos de rua que aí estão entram pelos nossos olhos com o grave e ao mesmo tempo alvissareiro aviso de que a hora é de fazer destino. Hora em que se busca não apenas protestar, porque o simples protesto pressupõe algo preexistente como referência central --o passado como espelho da reação coletivamente empreendida, ainda que na perspectiva do estilhaçamento dele.
"Agora, não!". Agora o que se busca é algo ainda inexistente, porém tão intuitivamente alentador quanto aquela presciência de que deu conta Bernard Shaw com a seguinte sentença oracular: "Vocês sonham com coisas que existem e se perguntam por quê. Eu sonho com coisas que não existem e me pergunto: Por que não?'".
Ou, como relatou Jung em diálogo tão medicinalmente terapêutico quanto espiritualmente propedêutico: "Pai, se o seu pequenino lhe disser eu vi você amanhã', pode acreditar, porque ele viu mesmo".
É esse o meu comentário. Não a minha explicação, de todo temerária. Um comentário de quem tateia as coisas ainda imersas em névoa e só apreendidas assim por vislumbres. Imaginação. Rudimentos de insights, na melhor das suposições.
Um singelo comentário de quem aprendeu com os grilos, não com os homens, que vale a pena roer toda a casca da noite para tentar chegar ao branco miolo do dia. O que não é diferente da percepção de que Deus fecunda a madrugada para o parto diário do Sol.
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