domingo, 11 de agosto de 2013

Bardot - Fabrício Corsaletti

folha de são paulo

Bardot

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Desculpem tratar de assunto tão pessoal, mas minha gata morreu e não tenho cabeça pra falar de outra coisa. Era uma gata caramelo, um pouco acima do peso e se chamava Bardot.
Ao contrário de alguns exemplares da sua espécie, não era traiçoeira nem metida. Era mansa e ia no colo do primeiro que lhe coçasse o focinho. Tinha o coração mole e seu lema era o mesmo dos poetas latinos: acima de tudo, prazer! Tratava-se, enfim, de um animal hedonista.
Vê-la comendo chocolate com a voracidade de uma mulher grávida e sem culpa sobre o lençol branco recém-trocado era um dos tormentos mas também uma das maravilhas desse mundo.
Eu a encontrei na rua, de madrugada, há nove ou dez anos. Era filhote, pele e osso simplesmente --e cheirava mal. Tentei lhe dar um banho, mas ela não deixou.
Eu não fazia ideia de como cuidar de um gato.
Pra falar a verdade não gosto muito de gato e quando era moleque cheguei a matar um gatinho jogando-o contra o muro do quintal -até escrevi um poema sobre isso.
No fundo, acho que tenho medo de gato; embora, pensando bem, eles é que deveriam ter medo de mim. Que horror. A gente escreve pra espantar os fantasmas e de repente percebe que o único fantasma que sobrou somos nós.
Depois do banho frustrado lhe servi leite num pires e depois do leite eu a vi dormir num travesseiro velho, dentro de uma caixa de papelão.
E quando ela acordou e me buscou com o olhar e miou pra mim joguei a toalha ("toalha da liberdade" ia escrever, mas a metáfora, além de cafona, seria falsa, pois eu era tudo menos livre naquela época, talvez fosse apenas ingênuo e egocêntrico, que mistura) e entendi que era amor. E contra o amor não há nada a fazer, só amar e amar de novo e se possível amar melhor.
Como naquela semana eu tinha visto "As Petroleiras", um faroeste de 1971 em que Brigitte Bardot lidera um bando de cowgirls do mal e Claudia Cardinale um bando de cowgirls do bem (não estou delirando, podem conferir), e como a pelagem da gata ainda sem nome brilhava feito um sol de pelúcia, decidi batizá-la em homenagem à dourada atriz francesa, que além do mais é doida por bichos.
E com essa mini tigresa por perto fui feliz. Quem tem gato sabe a que me refiro: a sintonia caprichosa, a cumplicidade austera, o pacto furtivo mas eletrizante refeito a cada dia.
Quem tem gato, porém, não sabe o que era a Bardot. Ela era única. Parecia o auge de si mesma. Parecia a criatura preferida de Deus. Parecia o anel de ouro do Diabo, que é a única coisa que Deus inveja no Diabo. Parecia sobretudo a companhia perfeita pra encostar a cabeça sobre a sua barriga e assistir a uma série qualquer de TV tomando sorvete de manga.
Mas Bardot foi atropelada e no dia seguinte foi enterrada e no ar da sua ausência nada se move como ela se movia.
Fabrício Corsaletti
Fabrício Corsaletti, cronista da revista "sãopaulo", nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de "Esquimó" (Cia. das Letras, 2010) e "Golpe de Ar" (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas, na revista "sãopaulo".

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