AGNALDO FARIASA história é antiga, para lá de conhecida, mas sempre surpreende: em 1857, ao publicar seu romance "Madame Bovary", Gustave Flaubert e seu editor foram processados pela Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena, por ofender a moral e a religião. Durante sua defesa pronunciou a sentença provavelmente mais imortal de toda sua obra: "Emma Bovary c'est moi".
A astuciosa confusão que Flaubert estabeleceu entre ele mesmo e sua personagem serviu para que se pensasse sobre a confusão entre leitores e personagens.
O tema é vasto, fértil, encantador. Vargas Llosa inicia seu ensaio "A Orgia Perpétua" (1957), sobre Flaubert e "Madame Bovary" dizendo que o grande drama de sua vida é a vida e morte de Emma Bovary. Com isso, assenta mais uma pedra no monumento em homenagem à genialidade de Flaubert, a mesma com que achata as mentes obtusas dos inúmeros críticos que não o compreenderam.
O Nobel peruano não foi o primeiro e não será o último a se impor a ingente tarefa de demonstrar aos seus contemporâneos, mesmo os mais ardentemente reacionários, o valor de uma obra que agride os cânones, os valores estabelecidos, a tradição. Pensando bem, há muito tempo Flaubert não precisa de quem o defenda --muito mais problemático mesmo era defendê-lo em 1857. Como se sabe, nunca foi fácil discordar das matérias e visões consensuais, até porque podia e pode dar processo, prisão, banimento.
Mario Vargas Llosa é brilhante analisando o passado assim como o é em grande parte de sua ficção. Mas,quando se propõe a examinar o presente, comporta-se como um verdadeiro promotor Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena. Sem tirar nem pôr. A prova está no seu "A Civilização do Espetáculo".
A consistente defesa que ele faz da importância da cultura contrasta com a indigência de seus comentários sobre a miséria intelectual da cultura contemporânea em geral e da produção artística contemporânea em particular. A seu ver, uma decorrência direta do florescimento da "sociedade do espetáculo" --o uso chapado da expressão cunhada por Guy Debord, é bem ao gosto de um intelectual anacoreta, que assiste do alto a derrocada do seu velho mundinho, sem perceber as nuances da inteligência que, por exemplo, circulam pelas redes sociais.
FÉ CEGA
O problema de Vargas Llosa é a fé cega no seu repertório, a pretensão de que sua indiscutivelmente sólida educação seja absoluta. Foi confiando totalmente nela que o autor (como contou em uma palestra em São Paulo) afirmou que, ao passear por toda uma edição da Bienal de Veneza, não viu absolutamente nada de interessante --o que teria catalisado o livro em questão--, concluindo que "o que antes era revolucionário virou moda, passatempo, brincadeira" e que a "frivolidade [nas artes plásticas] chegou a níveis alarmantes".
É certo que Mario Vargas Llosa é um grande artista, mas não lhe ocorre que seria no mínimo uma imprudência e no máximo uma burrice fazer um juízo tão peremptório sobre o mundo em que vive?
Vargas Llosa, assim como vários detratores da arte contemporânea, conclui pelo seu desacerto, sua inconsequência, seu vazio. E chega a isso por duas vias: desqualificando obras com comentários tão rasos quanto definitivos e comparando-as à produção do passado: seja ela a moderna, ou a alinhada com a fundação da estética no século 18, ou mesmo a produção do Renascimento, períodos esses em que a arte ganhou novos estatutos e graus de importância.
Tal atitude é desonesta, por dois motivos: primeiro, porque tenta fazer com que uma opinião passe por visada analítica; segundo, porque pretende medir algo por um sistema métrico alheio ao que ele traz consigo, esquecendo-se cinicamente de que isso equivale a julgar a qualidade de uma instalação tendo pinturas como parâmetro, ou avaliar um jogo de futebol usando regras do beisebol.
A omissão de fatos históricos é um aspecto fundamental da argumentação desenvolvida pelos arautos da morte da arte na contemporaneidade. Admira que não aprendam nada com seus inumeráveis antecessores --aqueles que jogaram ovos em Nijinsky e Stravinsky; os que ignoraram Van Gogh, os que processaram Flaubert.
Causam espanto aqueles que saem em defesa de uma arte absoluta, esquecendo-se, ou querendo-nos fazer esquecer, de que a arte, na qualidade de produto da história, varia no tempo e no espaço; nada tem de fixa; não teve seus mandamentos trazidos por nenhum Moisés. Parafraseando Brecht, a arte [como tudo] é filha do tempo, e não da autoridade.
RECEPÇÃO
A história da arte é pródiga em casos de mudança de recepção, em aclamar obras esquecidas por anos e até séculos, e em colocar no chão produções antes consideradas eternas. Se é fato que Shakespeare foi um caso de sucesso imediato, o mesmo não se aplica ao grande Sandro Boticelli, vizinho de Michelangelo na Sistina, que, como escreveu Michael Levey, "passou por séculos de abandono". Mesmo em meados do século 19, a crítica de arte era unânime em considerá-lo um pintor de "mulheres rudes de um modo geral destituídas de beleza".
Se as reputações artísticas sofrem altos e baixos, o mesmo não se pode dizer dos seus conceitos, que, arraigados ao público, sobrevivem duradouramente. O público, dizia Delacroix, "é um relógio que atrasa". A questão é: quem não é público? Se até mesmo os artistas o são, o que dizer de críticos e das demais autoridades que falam em nome da arte?
O grande desapontamento e irritação por parte de quem, como Vargas Llosa, visita exposições de arte contemporânea, deve-se a sua frustração por não encontrar nem sombra daquilo que já conhecia. Para todos esses caberia lembrar a lição de Rimbaud que, tendo a beleza em seu colo, injuriou-a.
A beleza, assim como alguns dos mais célebres pressupostos e objetivos da produção artística, foi paulatinamente despojada de seu estatuto porque possuía a imobilidade --e o tédio-- dos entes perfeitos. A partir de Baudelaire, a modernidade é associada ao movimento, à transformação ininterrupta --o que por certo inclui a produção artística.
O que é arte afinal? Como pretender fixar um conceito que de há muito afirma sua aversão a qualquer camisa de força? Em uma de suas colocações mais inspiradas, Waltercio Caldas afirmou que nunca se perguntava se o que estava fazendo era arte ou não; a pergunta era, a seu ver, improdutiva.
A arte é contemporânea quando faz notar nossas lacunas, nossa qualidade inacabada, revelando, em contrapartida, nossa possibilidade de ampliação como ser.
Vargas Llosa deveria abandonar sua presunção, evitando pontificar sobre aquilo que não se dispõe a entender. Deveria ter em mente que Caravaggio, antes de ser consagrado como gênio, foi considerado pintor de blasfêmias; que o afresco de Michelangelo na Capela Sistina impressionou Delacroix pela exuberância pouco bíblica dos corpos; e que o músico Béla Bártok foi considerado alguém que "saíra em procura da beleza armado de martelo e bastões".
A astuciosa confusão que Flaubert estabeleceu entre ele mesmo e sua personagem serviu para que se pensasse sobre a confusão entre leitores e personagens.
O tema é vasto, fértil, encantador. Vargas Llosa inicia seu ensaio "A Orgia Perpétua" (1957), sobre Flaubert e "Madame Bovary" dizendo que o grande drama de sua vida é a vida e morte de Emma Bovary. Com isso, assenta mais uma pedra no monumento em homenagem à genialidade de Flaubert, a mesma com que achata as mentes obtusas dos inúmeros críticos que não o compreenderam.
O Nobel peruano não foi o primeiro e não será o último a se impor a ingente tarefa de demonstrar aos seus contemporâneos, mesmo os mais ardentemente reacionários, o valor de uma obra que agride os cânones, os valores estabelecidos, a tradição. Pensando bem, há muito tempo Flaubert não precisa de quem o defenda --muito mais problemático mesmo era defendê-lo em 1857. Como se sabe, nunca foi fácil discordar das matérias e visões consensuais, até porque podia e pode dar processo, prisão, banimento.
Mario Vargas Llosa é brilhante analisando o passado assim como o é em grande parte de sua ficção. Mas,quando se propõe a examinar o presente, comporta-se como um verdadeiro promotor Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena. Sem tirar nem pôr. A prova está no seu "A Civilização do Espetáculo".
A consistente defesa que ele faz da importância da cultura contrasta com a indigência de seus comentários sobre a miséria intelectual da cultura contemporânea em geral e da produção artística contemporânea em particular. A seu ver, uma decorrência direta do florescimento da "sociedade do espetáculo" --o uso chapado da expressão cunhada por Guy Debord, é bem ao gosto de um intelectual anacoreta, que assiste do alto a derrocada do seu velho mundinho, sem perceber as nuances da inteligência que, por exemplo, circulam pelas redes sociais.
FÉ CEGA
O problema de Vargas Llosa é a fé cega no seu repertório, a pretensão de que sua indiscutivelmente sólida educação seja absoluta. Foi confiando totalmente nela que o autor (como contou em uma palestra em São Paulo) afirmou que, ao passear por toda uma edição da Bienal de Veneza, não viu absolutamente nada de interessante --o que teria catalisado o livro em questão--, concluindo que "o que antes era revolucionário virou moda, passatempo, brincadeira" e que a "frivolidade [nas artes plásticas] chegou a níveis alarmantes".
É certo que Mario Vargas Llosa é um grande artista, mas não lhe ocorre que seria no mínimo uma imprudência e no máximo uma burrice fazer um juízo tão peremptório sobre o mundo em que vive?
Vargas Llosa, assim como vários detratores da arte contemporânea, conclui pelo seu desacerto, sua inconsequência, seu vazio. E chega a isso por duas vias: desqualificando obras com comentários tão rasos quanto definitivos e comparando-as à produção do passado: seja ela a moderna, ou a alinhada com a fundação da estética no século 18, ou mesmo a produção do Renascimento, períodos esses em que a arte ganhou novos estatutos e graus de importância.
Tal atitude é desonesta, por dois motivos: primeiro, porque tenta fazer com que uma opinião passe por visada analítica; segundo, porque pretende medir algo por um sistema métrico alheio ao que ele traz consigo, esquecendo-se cinicamente de que isso equivale a julgar a qualidade de uma instalação tendo pinturas como parâmetro, ou avaliar um jogo de futebol usando regras do beisebol.
A omissão de fatos históricos é um aspecto fundamental da argumentação desenvolvida pelos arautos da morte da arte na contemporaneidade. Admira que não aprendam nada com seus inumeráveis antecessores --aqueles que jogaram ovos em Nijinsky e Stravinsky; os que ignoraram Van Gogh, os que processaram Flaubert.
Causam espanto aqueles que saem em defesa de uma arte absoluta, esquecendo-se, ou querendo-nos fazer esquecer, de que a arte, na qualidade de produto da história, varia no tempo e no espaço; nada tem de fixa; não teve seus mandamentos trazidos por nenhum Moisés. Parafraseando Brecht, a arte [como tudo] é filha do tempo, e não da autoridade.
RECEPÇÃO
A história da arte é pródiga em casos de mudança de recepção, em aclamar obras esquecidas por anos e até séculos, e em colocar no chão produções antes consideradas eternas. Se é fato que Shakespeare foi um caso de sucesso imediato, o mesmo não se aplica ao grande Sandro Boticelli, vizinho de Michelangelo na Sistina, que, como escreveu Michael Levey, "passou por séculos de abandono". Mesmo em meados do século 19, a crítica de arte era unânime em considerá-lo um pintor de "mulheres rudes de um modo geral destituídas de beleza".
Se as reputações artísticas sofrem altos e baixos, o mesmo não se pode dizer dos seus conceitos, que, arraigados ao público, sobrevivem duradouramente. O público, dizia Delacroix, "é um relógio que atrasa". A questão é: quem não é público? Se até mesmo os artistas o são, o que dizer de críticos e das demais autoridades que falam em nome da arte?
O grande desapontamento e irritação por parte de quem, como Vargas Llosa, visita exposições de arte contemporânea, deve-se a sua frustração por não encontrar nem sombra daquilo que já conhecia. Para todos esses caberia lembrar a lição de Rimbaud que, tendo a beleza em seu colo, injuriou-a.
A beleza, assim como alguns dos mais célebres pressupostos e objetivos da produção artística, foi paulatinamente despojada de seu estatuto porque possuía a imobilidade --e o tédio-- dos entes perfeitos. A partir de Baudelaire, a modernidade é associada ao movimento, à transformação ininterrupta --o que por certo inclui a produção artística.
O que é arte afinal? Como pretender fixar um conceito que de há muito afirma sua aversão a qualquer camisa de força? Em uma de suas colocações mais inspiradas, Waltercio Caldas afirmou que nunca se perguntava se o que estava fazendo era arte ou não; a pergunta era, a seu ver, improdutiva.
A arte é contemporânea quando faz notar nossas lacunas, nossa qualidade inacabada, revelando, em contrapartida, nossa possibilidade de ampliação como ser.
Vargas Llosa deveria abandonar sua presunção, evitando pontificar sobre aquilo que não se dispõe a entender. Deveria ter em mente que Caravaggio, antes de ser consagrado como gênio, foi considerado pintor de blasfêmias; que o afresco de Michelangelo na Capela Sistina impressionou Delacroix pela exuberância pouco bíblica dos corpos; e que o músico Béla Bártok foi considerado alguém que "saíra em procura da beleza armado de martelo e bastões".
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