Margaret Thatcher: é complicado...
O movimento punk não surgiu com Thatcher; ambos são fruto da penúria generalizada dos anos 70
Só não existe uma estátua de Margaret Thatcher para competir em magnitude com a monstruosidade erguida em homenagem a Winston Churchill na frente do Parlamento, porque o Establishment britânico jamais engolirá o que considera ser a vulgaridade das origens pequeno-burguesas da ex-primeira-ministra morta nesta semana.
Para se ter uma ideia da animosidade que a aristocracia nutre por Maggie, basta dizer que a rainha Elizabeth nunca manteve segredo de que os 11 anos de convivência com ela representaram um verdadeiro martírio para a soberana, obrigada a receber Thatcher todas as terças-feiras nas audiências de prestações de contas entre ambas.
Bem, qualquer ser minimamente sociável dificilmente escolheria a ex-primeira-ministra para passar o fim de semana no Guarujá, ou, quiçá, a chamaria para flanar diante das vitrines do shopping JK. Além de ser a personificação mais refinada da antipatia, a mulher representa a imagem da crueldade para uma inteira geração. Mas não passa de maniqueísmo típico da turma que precisa apaziguar suas emoções infantis tratar Margaret Thatcher como aquela governanta má de conto de fadas, que só causa fogo e caos.
Cheguei à Inglaterra para morar em 1976 e encontrei uma pocilga em que a juventude não tinha perspectiva de carreira. Todo o mundo e seu vizinho pareciam estar desempregados; imigrantes eram xingados nas ruas, quando não atacados fisicamente e culpados abertamente pelo desemprego recorde.
Os serviços públicos davam vergonha e/ou nojo. As filas eram enormes e as brigas com funcionários públicos, corriqueiras. O país vivia refém dos sindicatos --a cada dia parava um serviço essencial.
A Inglaterra já estava moribunda, seja pela inércia de império acomodado, seja pela crise do petróleo. Não foi Thatcher que trouxe o problema. Até entendo a lamúria do manifesto que Morrissey, ex-The Smiths, emitiu nesta semana, alegando que a "dama de ferro" "não tinha um pingo da humanidade".
Note que o movimento punk não surgiu por conta do governo Thatcher. Ambos são fruto da mesma árvore de penúria generalizada.
Goste-se ou não dela, estamos falando de uma mulher --repito, de uma mulher-- que conseguiu liderar o Partido Conservador contra a vontade da elite que conduz o país desde 1066 e que teve coragem de dobrar os sindicatos, coisa que os trabalhistas nunca tinham feito.
Além disso, mandou o maridão superbem-sucedido, Dennis, para casa vestir chinelos enquanto ela dava conta do recado.
Que eu saiba, quem sugere que se faça isso é o best-seller "Faça Acontecer", de Sheryl Sandberg, a superexecutiva do Facebook, considerada a porta-voz do novo feminismo.
Maggie destruiu as pesquisas médicas nas universidades, as artes, a cultura e a educação? Sim. Mas já estava tudo indo pro brejo mesmo.
A política de austeridade, de corte de gastos e a prestação de contas no receituário keynesiano que ajudou a impor, taxando o consumo, não os ganhos, privatizando serviços já sucateados e dando autonomia ao Bank of England, o Banco Central da Inglaterra, são medidas que reergueram o país.
É claro que sua figura dickensiana de vilã intragável com aquela expressão de harabishueba (merda no bigode) não será esquecida tão cedo. Mas julgá-la por ser amiga de Pinochet ou por massacrar os pobres garotos argentinos indefesos sem pensar duas vezes é tentação à qual não podemos ceder tão facilmente diante do imenso novelo da história.
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