Fausto e a Coca-Cola
Até a publicidade tem limites, dizem. Artistas só não devem tê-los na hora de criar
Sempre tive problemas com publicidade, alguns de ordem cognitiva: não entendo por que anúncios precisam ter uma piada ao final, nem por que a mensagem às vezes parece ser contra o produto, nem por que alguém entraria num consórcio de casa própria seguindo a recomendação de Paulo Goulart.
O espanto maior decorre da lógica do processo. Como as marcas precisam falar a uma plateia ampla, naturalmente buscam o mínimo denominador de inteligência, charme, humor. Nos intervalos da TV aberta percebemos como vivemos entre imbecis, a massa dos Seu Ênio Dos Recursos Humanos que se identifica --alguma pesquisa deve provar-- com o espírito de um comercial de cerveja.
De qualquer modo, a publicidade faz parte do mundo. Além de possibilitar que eu escreva esta coluna, porque anunciantes são um dos sustentos de um jornal, é um dado até psicológico da vida contemporânea.
Num texto publicado no "Globo" (http://goo.gl/zurR9), Daniel Galera mostra como a identificação com marcas pode ser tão definidora de uma personalidade quanto preferências estéticas e políticas, o que não deveria ser ignorado por uma literatura que se diz realista.
A questão é saber até onde a arte, que sempre dependeu de mecenas, do Estado ou de ambos, pode ser contaminada por seus financiadores. É tão ingênuo negar que a relação é delicada como acreditar que exista independência absoluta. Alguém sempre paga a conta, mesmo que seja o público --forçando o artista a se repetir, diluir ou radicalizar para ter o trabalho aceito, demanda às vezes mais prejudicial que a de um ministério ou fábrica de biscoitos.
Nesse equilíbrio difícil, não dá para botar todos os exemplos no mesmo saco. Poucos desaprovariam uma empresa que adotasse uma orquestra, um museu, um festival de teatro, um prêmio literário. Mas o caso recente de Tom Zé, que precisou explicar sua presença num filme da Coca-Cola (http://goo.gl/Gko0I), depois de ter gravado sem problemas um disco bancado pela Natura, prova que há diferença entre patrocínio, cooptação e adesão, com as várias escolhas possíveis entre os extremos.
Depende de quem faz e como faz. Reynaldo Gianecchini usar um drama pessoal de saúde para vender seguros do Banco do Brasil, sabendo da comoção que sua história causou no país, é diferente de ganhar uns trocos num anúncio da Bombril. Mano Brown gravar um clipe produzido pela Nike, dada a habitual postura do cantor contra o mercado e o establishment, é de um simbolismo dificilmente ignorável (mais tarde, noticiou-se que ele processou a empresa por uso indevido de imagem numa campanha de tênis).
A associação entre cultura e propaganda contrapõe dois mitos. Por um lado, a herança romântica que nos faz enxergar artistas como indivíduos puros, cuja criatividade se alimenta de uma essência necessariamente pobre e em conflito com o mundo. É o que torna nobre a atitude de Lobão, ao recusar uma fortuna para vender o hit "Me Chama" para uma operadora de celulares.
O segundo mito é o de que o sucesso desculpa tudo, e daí uma celebridade topar sem receio campanhas à sua maneira inesquecíveis. Não imagino outra motivação para o Jota Quest estrelar um clipe onde cantava: "Fantasiados de esperança/ No futuro, no amor/ Como uma viagem de Fanta/ A todo vapor".
A punição a tal pacto faustiano, em que conteúdo e independência são sacrificados em troca de ganhos imediatos e mundanos, conta com o exemplo trágico do grande pop star de nossa época. Foi uma queimadura na gravação de um comercial da Pepsi, consta, que levou Michael Jackson a dores incessantes, cirurgias obscuras e o vício nos remédios que o acabariam matando.
Não é preciso ir tão longe na parábola, se quisermos esmiuçar o dilema de vincular imagem e obra a um slogan, negócio e/ou mentira. Como em toda questão moral, o bom senso é um guia seguro. Até a publicidade tem limites, dizem. Artistas só não devem tê-los na hora de criar.
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