FREI BETTO
TENDÊNCIAS/DEBATES
Infelicianeidade
Nada contra o pastor Feliciano abominar negros e odiar homossexuais. Desde que não transforme seu mandato em retrocesso
Vocábulos nascem de expressões populares. Assim como nomes próprios trazem significados que deitam raízes em suas respectivas etimologias. Feliciano é nome de origem latina, derivado de felix, feliz. Nem sempre, contudo, uma pessoa chamada Modesto deixa de ser arrogante, e conheço uma Anabela que é de uma feiura de fazer dó.
Estamos todos nós, defensores dos direitos humanos, às voltas com um pepino federal. Nossos servidores na Câmara dos Deputados, aqueles cujos altos salários são pagos pelo nosso bolso, cometeram o equívoco de eleger o deputado e pastor Marco Feliciano para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias.
O pastor deputado, filiado ao PSC-SP, escreveu em seu Twitter: "Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato". Em outra mensagem, postou: "Entre meus inimigos na net (sic) estão satanistas, homoafetivos, macumbeiros...".
Em processo aberto no Supremo Tribunal Federal, Feliciano é acusado de induzir ou incitar discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia ou religião --crime sujeito à prisão de um a três anos, além de multa. Em sua defesa, Feliciano afirma: "Citando a Bíblia (...) africanos descendem de Cão (sic) (ou Cam), filho de Noé. E, como cristãos, cremos em bênçãos e, portanto, não podemos ignorar as maldições".
Que deus é esse que amaldiçoa seus próprios filhos? Essa suposta teologia vigorou no Brasil colonial para justificar a escravidão. O Deus de Jesus ama incondicionalmente a todos. Ainda que O rejeitemos, Ele não deixa de nos amar, conforme atestam a relação do profeta Oseias e sua mulher, Gomer, e a parábola do Filho Pródigo.
Todo fundamentalismo cristão é ancorado na interpretação literal da Bíblia, que deriva da ignorância exegética e teológica. Os criacionistas, por exemplo, acreditam que existiram um senhor chamado Adão e uma senhora chamada Eva, dos quais somos descendentes (embora não expliquem como, pois tiveram dois filhos homens, Caim e Abel...). Ora, Adão em hebraico é terra, e Eva, vida. O autor bíblico quis acentuar que a vida, dom maior de Deus, brota da terra.
Ter Feliciano como presidente de uma comissão tão importante --por culpa de legendas como PMDB, PSDB e PT-- é uma infelicidade. Não condiz com o nome do deputado que, na roda do samba que está obrigado a dançar, insiste no refrão: "Daqui não saio, daqui ninguém me tira".
O deputado é um pastor evangélico. Sua conduta deveria, no mínimo, coincidir com os valores pregados por Jesus, que jamais discriminou alguém.
Jesus condenou o preconceito dos discípulos à mulher sírio-fenícia; atendeu solícito o apelo do centurião romano (um pagão!) interessado na cura de seu servo; deixou que uma mulher de má reputação lhe lavasse os pés com os próprios cabelos e ainda recriminou os que se escandalizaram ao presenciar a cena; e não emitiu uma única frase moralista à samaritana adepta da rotatividade conjugal, pois estava no sexto homem! Ao contrário, a ela Jesus se revelou como o Messias.
É direito intrínseco de todo ser humano, e também da democracia, cada um pensar pela própria cabeça. Nada contra o pastor Feliciano, na contramão do Evangelho, abominar negros e odiar homossexuais e adeptos da macumba. Desde que não transforme seu preconceito em atitude discriminatória e seu mandato em retrocesso às conquistas que a sociedade brasileira alcança na área dos direitos humanos.
Estamos todos nós indignados frente ao impasse armado pelo jogo político rasteiro da Câmara dos Deputados. Eis uma verdadeira situação de infelicianeidade, com a qual não podemos nos conformar.
MARCOS TROYJO
TENDÊNCIAS/DEBATES
China: improvável líder global
É improvável que Pequim deseje financiar sua condição de líder global. Tal status é incompatível com o modelo de crescimento que adotou
Com a recente elevação de Xi Jinping ao status de premiê chinês, pergunta-se cada vez mais como se dará o desdobramento da ascensão da China no cenário global. Será que, além de ser motor do crescimento mundial, a China também deseja exercer maior liderança? Ser vista como única potência de dimensão semelhante à dos EUA?
Muitos analistas rapidamente decretam que o impressionante crescimento econômico chinês delineia uma nova ordem global, em que a China será a potência preponderante. Existem, no entanto, graves falhas nessa maneira de ver o desenrolar das relações internacionais nos próximos 50 anos.
Historicamente, como bem exemplifica Henry Kissinger em seu "Sobre a China", líderes chineses sempre enxergaram sua cultura como intrinsecamente superior. O modelo chinês de império se caracterizou ao longo do tempo não pela expansão de sua cultura, mas pela absorção de outras culturas. Diferentes civilizações, localizadas em seu entorno geopolítico, foram incorporadas à visão de mundo chinesa.
O fechamento a outras culturas incutiu na alma e na arquitetura chinesas marcas perceptíveis. Vem à mente o hermetismo da Cidade Proibida ou o da Grande Muralha, monumentos ao isolacionismo chinês.
É curioso constatar que a recente ascensão da China se dá como notável exceção a seu paradigma histórico de insularidade. Por causa de uma "externalidade geopolítica" dos anos 1970 --a necessidade dos EUA de rachar a viga mestra do comunismo mediante a promoção do cisma sino-soviético--, os benefícios econômicos estendidos à China a reconfiguraram como potência exportadora. Seu êxito resulta portanto de uma "mudança de DNA"; de ter seu crescimento voltado para fora.
A ideia de "liderança global" é um experimento a que as autoridades chinesas ainda não decidiram se lançar. A extroversão da China em outros campos que não o da economia é obra difícil. Na arena política global, a visão chinesa tem sido de "crítica parcial", não necessariamente de oposição a um sistema protagonizado pelos EUA.
A razão é simples. A geopolítica dos últimos 30 anos, em que a China é menos um ator e mais um espectador, criou ambiente propício à continuada prosperidade chinesa.
A China talvez seja o país que menos contribuiu para as operações de paz da ONU entre os países-membros do Conselho de Segurança. É ainda o que mais oferece resistência a movimentos de reforma do conselho, particularmente ao aumento do número de membros permanentes.
Liderança global, hipótese em que a China teria de assumir mais responsabilidades no campo da paz e segurança, é um luxo bastante caro. Ao passo que, em 2012, cada cidadão norte-americano despendeu US$ 1.700 com defesa, cada chinês gastou apenas US$ 65.
É improvável que a China deseje financiar sua condição de líder global. Tal status é incompatível com o modelo de crescimento adotado até o presente por Pequim. Ademais, embora muitas nações flertem com a experiência chinesa de crescimento econômico, é impossível reproduzi-la como modelo "adaptável" a diferentes realidades socioeconômicas.
E há também limitações em termos de "soft power". Se liderança tem que ver com o plano dos valores, que projeto a China tem a oferecer ao mundo? Assim, dificilmente pode-se pensar a China como "role model", um exemplo a ser seguido, ou mesmo imaginar um "sonho chinês" a inspirar indivíduos ou países das mais variadas culturas.
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